domingo, 28 de outubro de 2012

Instantes





          Chegou com aquele casaquinho azul, mais comprido atrás que na frente, de rasteirinha e rabo de cavalo. Entrou como sempre, conhecedora do espaço, e observou o cotidiano com olhar maduro de regozijo. Viu-me habituada à rotina ordeira e sorriu com doçura. Então tirou a bolsa à tiracolo do ombro  e o tempo retrocedeu.


          Ela usava um vestidinho curto xadrez e um chinelo de palha mínimo – valia a pena guardar como lembrança. O vestido era azul e branco. Uma fita também azul prendia uma espécie de tufo no alto da cabeça e, no ombro, a bolsinha à tiracolo combinava com o chinelo presente de viagem. Fazia pose para a foto com as duas mãozinhas unidas, apoiando a cabeça meio de lado.
          Naquela época, as fotografias eram mais calculadas, programadas. Tinham valor e guardavam com mais propriedade os instantes que mereciam eternizar-se. Roubavam fugacidades do tempo e, quando impressas, sabiam-se amareladas no futuro, tinham consciência de que aconteceria isso.
          Ela adorou o chinelo que nem devia ser confortável, pois os pés eram cutucados por fiapos de palha avessos ao trançado. Pés miúdos e roliços como as mãos, onde ainda se viam alguns furinhos próprios de crianças que parecem ter covinhas no final de cada dedo.
          Era uma graça atrás da outra naquele dia comum no meio dos outros. E tudo acontecia de forma tão natural e tão harmônica, que a vida sentia pena de seguir célere, séria, circunspecta. Você não quer guardar a bolsinha? Vamos deixá-la aqui perto, assim logo cedo, quando acordar, você a coloca de novo. Não houve jeito. Foi dormir com a bolsinha à tiracolo. Pequenina como o chinelo capaz de calçar uma menininha de três anos. Talvez nos pretendesse dizer que a felicidade que cabia lá dentro poderia querer sair disfarçada , à noite, quando ninguém mais se lembrasse de que é preciso  tomar conta dela minuto a minuto.


          Atualizou-se a foto da menina com as mãos unidas, apoiando o rosto meio de lado. Os traços também eram similares, mas não havia o chafariz despenteado no alto da cabeça. No sofá quadrado, ao lado da almofada retangular trazida de viagem, a bolsa à tiracolo de grife,  nada de palha. Dentro dela, instantes de felicidade acumulados. Prontos para acolher o momento feliz daquela noite e mais todos os outros que se eternizariam em fotos registradas em sequência; para serem vistas mais tarde ou não, isso não importa neste mundo impaciente.

9 comentários:

  1. Flá, feliz com sua visita e com a dose farta de estímulo!
    Beijos

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  2. Linda sobreposição de doces momentos...
    Sempre me pego emocionada ao ler seus textos, Maria Teresa.

    Beijos

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  3. Que terna viagem. Quem sabe sua voltando à Maria Teresa de outros tempos. Como sempre - e felizmente - você nos deixa num instigante limbo, sem saber ao certo de quem ou do que se fala. Mas como é bom esse território movediço. Gostei especialmente do final. Que venham outros textos de igual quilate. Um beijo pra você.

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  4. Dulce:
    Doces momentos têm sabor de vida alinhavada por escrito, não é mesmo?
    Você sempre um amor!
    Beijos



    Marcelo:
    Às vezes acho que o território fica movediço demais, mas fico muito feliz ao saber que é prazeroso esse balançar da ponte. Ainda mais quando você é que está passando por ela!
    Um abração

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  5. Excelente momento de leitura, a despertar remotas e ternas lembranças.
    Um abraço

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  6. Elvira:
    Muito obrigada pelas palavras afetuosas. Bom saber que o texto proporcionou lembranças aprazíveis. Muito bom!
    Abraços

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  7. Quanta emoção na sequência de imagens! A vida se desenrola e sua passagem se fixa nas fotos e nas lembranças. Foi um prazer rememorá-las. Bj Ruth

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  8. Ru:
    Alguns momentos são preciosos... Como faz bem relembrá-los, não é?
    Beijo carinhoso

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