sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Ilusões

            
               - A maior luta é sempre a da gente com a gente, ela me disse ainda com os olhos marejados. O sofrimento parece uma moita de bambus num campo seco, que se vai desfazendo. Quase tudo acaba com o tempo, não o sofrimento. Resistente, deixa marcas que se vão cobrindo, mas as cicatrizes não se obscurecem; pelo contrário, ficam cada vez mais evidentes no profundo. Dizia e olhava o nada, falando também com as mãos, seu jeito de sempre. E prosseguia:
               - A felicidade foi tanta, que incomodou, isso que aconteceu. É, foi desparafusada, desmontada e levada embora para o longe do perto, como se seu peso fosse suficiente para esmagar afetos. Esses também não se dissolvem, por mais que se distanciem. Parou então de falar e chorou mornamente, para que as lágrimas pudessem derreter seu abatimento. Então eu perguntei:
               - Você não vai reagir, não vai dizer nada?
               - Não existe linguagem sem engano e as coisas estão longe de serem dizíveis, não é?  Eu sei que sim, continuava, quase sem levantar os olhos. Importante agora é saber segurar as alegrias momentâneas, transparentes como um líquido, na concha das mãos. Sem testemunhas, sem registros, sem comprovação.
               - Você está preparada? Sente-se forte o suficiente em saber o que fazer com a vida que virá?
               - Você sabe? Quem sabe? Se é verdade que podemos viver uma pequena parte daquilo que há em nós, fingirei isso. Por fora. Farei com que a ilusão tenha gosto de canela, seja sedutora e mascarada. A canela tem poder de anestesiar rudezas e torna o bolo macio, irresistível.
               - E a outra parte? – perguntei.
               - Essa ficará registrada com palavras, como num espelho em negativo; por que perder tempo com egoísmos e com possessividades? – perguntou, e então fixou os olhos nos meus.

               Essa conversa, lembrei-me dela ao ver a foto amarelada. Se as distâncias amenizaram seu sofrimento? Talvez sim, talvez não. Os afetos certamente solidificaram aquelas cicatrizes, pois afetos são perenes, têm fios invisíveis e abraçam o de dentro. Por fora, só fica mesmo o cheiro de canela.

6 comentários:

  1. O sofrimento nos marca mas nos forma. Torna-se parte de nossa personalidade, nos faz fortes, persaverantes... Sobretudo se vem acompanhado das bênçãos de Deus.!

    BJ RUTH

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  2. Ru:
    Sofrimento também é abençoado. O dos livros e os outros.
    Beijo carinhoso

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  3. Senti um ou outro traço de Guimarães Rosa neste seu texto amargo e ao mesmo tempo sedutor. Mais uma bela lição de bem escrever, Maria Teresa. Um grande abraço.

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  4. Marcelo:
    Esses traços que você vê alegram o de dentro! Obrigada.
    Abração

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  5. Um belo texto (o que não é novidade), um texto cheio de verdade.
    Muito bom, Maria Teresa.

    Beijo grande.

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  6. Dade:
    bom ver você por aqui.
    Bjo carinhoso

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