Chegou com
aquele casaquinho azul, mais comprido atrás que na frente, de rasteirinha e
rabo de cavalo. Entrou como sempre, conhecedora do espaço, e observou o
cotidiano com olhar maduro de regozijo. Viu-me habituada à rotina ordeira e
sorriu com doçura. Então tirou a bolsa à tiracolo do ombro e o tempo retrocedeu.
Ela usava um
vestidinho curto xadrez e um chinelo de palha mínimo – valia a pena guardar como
lembrança. O vestido era azul e branco. Uma fita também azul prendia uma espécie
de tufo no alto da cabeça e, no ombro, a bolsinha à tiracolo combinava com o
chinelo presente de viagem. Fazia pose para a foto com as duas mãozinhas unidas,
apoiando a cabeça meio de lado.
Naquela
época, as fotografias eram mais calculadas, programadas. Tinham valor e
guardavam com mais propriedade os instantes que mereciam eternizar-se. Roubavam
fugacidades do tempo e, quando impressas, sabiam-se amareladas no
futuro, tinham consciência de que aconteceria isso.
Ela adorou o
chinelo que nem devia ser confortável, pois os pés eram cutucados por fiapos de
palha avessos ao trançado. Pés miúdos e roliços como as mãos, onde ainda se
viam alguns furinhos próprios de crianças que parecem ter covinhas no final de
cada dedo.
Era uma graça
atrás da outra naquele dia comum no meio dos outros. E tudo acontecia de forma
tão natural e tão harmônica, que a vida sentia pena de seguir célere, séria,
circunspecta. Você não quer guardar a
bolsinha? Vamos deixá-la aqui perto, assim logo cedo, quando acordar, você a
coloca de novo. Não houve jeito. Foi dormir com a bolsinha à tiracolo.
Pequenina como o chinelo capaz de calçar uma menininha de três anos. Talvez nos pretendesse dizer que a felicidade que cabia lá dentro poderia querer sair
disfarçada , à noite, quando ninguém mais se lembrasse de que é preciso tomar conta dela minuto a minuto.
Atualizou-se
a foto da menina com as mãos unidas, apoiando o rosto meio de lado. Os traços
também eram similares, mas não havia o chafariz despenteado no alto da cabeça. No
sofá quadrado, ao lado da almofada retangular trazida de viagem, a bolsa à
tiracolo de grife, nada de palha. Dentro dela, instantes de felicidade acumulados. Prontos para
acolher o momento feliz daquela noite e mais todos os outros que se eternizariam em fotos
registradas em sequência; para serem vistas mais tarde ou não, isso não importa
neste mundo impaciente.
(imagem: http://www.google.com.br/imgres)
Bonito :)
ResponderExcluirFlá, feliz com sua visita e com a dose farta de estímulo!
ResponderExcluirBeijos
Linda sobreposição de doces momentos...
ResponderExcluirSempre me pego emocionada ao ler seus textos, Maria Teresa.
Beijos
Que terna viagem. Quem sabe sua voltando à Maria Teresa de outros tempos. Como sempre - e felizmente - você nos deixa num instigante limbo, sem saber ao certo de quem ou do que se fala. Mas como é bom esse território movediço. Gostei especialmente do final. Que venham outros textos de igual quilate. Um beijo pra você.
ResponderExcluirDulce:
ResponderExcluirDoces momentos têm sabor de vida alinhavada por escrito, não é mesmo?
Você sempre um amor!
Beijos
Marcelo:
Às vezes acho que o território fica movediço demais, mas fico muito feliz ao saber que é prazeroso esse balançar da ponte. Ainda mais quando você é que está passando por ela!
Um abração
Excelente momento de leitura, a despertar remotas e ternas lembranças.
ResponderExcluirUm abraço
Elvira:
ResponderExcluirMuito obrigada pelas palavras afetuosas. Bom saber que o texto proporcionou lembranças aprazíveis. Muito bom!
Abraços
Quanta emoção na sequência de imagens! A vida se desenrola e sua passagem se fixa nas fotos e nas lembranças. Foi um prazer rememorá-las. Bj Ruth
ResponderExcluirRu:
ResponderExcluirAlguns momentos são preciosos... Como faz bem relembrá-los, não é?
Beijo carinhoso