O salto do sapato
de verniz deve ter uns dez centímetros. Pernas perfeitas, joelhos meio à
mostra abaixo da saia justa bem preta, com uns fiozinhos cinza
minúsculos, imperceptíveis. O cinto largo separa os quadris
volumosos do tronco, vestido com camisa branquíssima de botões dourados.
Combinam com o brinco enorme em forma de argola. Seios pesados e caídos
agigantam-se sob o tecido bem passado. Cabelo negro, preso num coque, vê-se que
é longo: de forma alguma atrapalha as anotações de consultas no quadro colorido
exposto no visor. Temos vagas só daqui a três semanas! Infelizmente, senhora!
Creio não ser possível, mas vou falar com ele. Entendo sua urgência, logo mais
retorno. Os sapatos atravessam a sala com passinhos pequenos e equilibram o
corpo ainda mais pesado pelo colar de três voltas (serão quatro?). Voltas
douradas. Lábios rosa antigo balbuciam perguntas fluidas sem vírgulas sem
parênteses sem sorrisos. Tudo mecânico, cronometrado, oco. Os sapatos voltam
balançando os seios, os colares e as argolas das orelhas. Pisam com a ponta do
pé numa espécie de dança de fundo, distraindo a espera interminável e o cheiro
de bala de morango do pote ao lado das revistas. O gordo da cadeira em frente
pega três ao mesmo tempo. Amassa todos os papéis formando uma bolinha, que cai
no chão e fica ali. O bebê chora no colo da mulher de sapato amarelo. Ela
levanta e caminha de um lado para o outro, até que desabotoa a blusa e afunda a
boca cheia de lágrimas no bico de seu peito minguado. O gordo olha, pega mais
duas balas e guarda os papéis, desta vez, no bolso da jaqueta camurça. O
cordão do tênis está desamarrado e ele abaixa para fazer o laço. Esforça-se e
fica cada vez mais vermelho. Estica as pernas. Infelizmente não vai ser
possível mesmo, desculpe; a agenda está lotada, só se alguém desistir. O bebê
aproveita o silêncio apetitoso e suga com força a mulher de passos cor de ovo.
Ela tem olhos azuis vazios e não percebe a indiscrição do gordo, que desiste do
cadarço. Na sala sem janelas a expectativa dói e o telefone toca. Só
daqui a três semanas, a menos que alguém desista. O bebê dorme e o gordo
cochila com cheiro de suor ácido. Sapatos amarelos saltos dez caminham em sua
direção. Olhos azuis balbuciam delícias e desfilam com colar de madrepérolas
sobre os seios nus, escondidos pela camiseta branca decotada. Cabelos negros
balançam com a brisa e o corpo longilíneo deixa entrever maravilhas dentro da
saia justa. Preta, com uns fiozinhos cinza minúsculos, imperceptíveis. É tempo de morangos e
não há pressa. O bebê dorme e o gordo ri.
(imagem: http://www.google.com.br)
Muito suave, perceptível e cativante. Parabéns Teresa, a riqueza da descrição faz sentir perfeitamente o "modo espera". Seja em qual espera da vida estejamos, creio que sempre existirão angústias como a fome de um bebê, e a frustração de não se poder amarrar um sapato.
ResponderExcluirBeijos da sua fã
Helena Vitorino
Querida Helena, de fato, as esperas sempre são dolorosas e, às vezes, inspiradoras de devaneios... Fiquei feliz com sua mensagem. Seja sempre muito bem-vinda! Beijo carinhoso.
ResponderExcluirMinha querida amiga Maria Teresa, é preciso muito talento e capacidade de observação para tirar tudo isso de uma sala de espera. Rara lavra. Um grande abraço deste fã.
ResponderExcluirAh, Marcelo, essas esperas são mesmo de matar! Obrigada pelo comentário generoso. Abração pra você.
ResponderExcluirmicrocenas em que a vida, às vezes, está toda...
ResponderExcluirbeijos.
Feliz pelo recado! A vida toda às vezes transborda quando alegrias borbulham! Beijos
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