domingo, 12 de junho de 2011

Expectativas

Levantou cedo para fazer o bolo de chocolate meio amargo, aquele bem molhado e cheio de nozes, talvez também ficasse bom com um pouco de ganache e uns morangos pela metade por cima, para quebrar o exagero de açúcar. Gostou da ideia e, enquanto lavava os morangos, comeu uns três enormes, degustando a expectativa de vê-lo dali a pouco, depois de dois longos meses e meio. Laura foi sempre primorosa nos preparativos.  Como prato principal, sorrentine amore, massa vermelha recheada de vitela, ma-ra-vi-lho-sa criação da Flávia do Locanda Della Pasta. Com molho ao sugo, pois Aldo não dispensava o molho de tomate em dia de jogo do Palmeiras. Arrumou a mesa ainda de camisola, enfeitando tudo com margaridinhas cheias de vida, que combinavam com a borda amarela dos pratos novos e com os jogos americanos de palhinha. Juntou os livros espalhados pelas cadeiras e pelo chão, perfumou o ambiente e foi para o banho.
Ligou o chuveiro e ficou ali morrendo de frio, esperando a água esquentar. Separou o vestido de lã de gola larga, a meia fio 60, o sapato de salto grosso. Deixou tudo arrumado no sofá ao lado da cama e foi verificar a água. Nada. Nem uma fumacinha. Não teve jeito: enrolou-se na toalha e foi até a lavanderia conferir o aquecedor. Estava apagado. Depois de gastar quase uma caixa inteira de fósforos, sem êxito, ligou para o porteiro e ficou sabendo que o gás só voltaria depois do almoço: a Comgás estava resolvendo um problema na rua e cortou o abastecimento. Justo no dia dos namorados? Laura tomou banho frio e voltou para baixo das cobertas para evitar uma segunda pneumonia. Ainda bem que não tinha sido a luz. A sobremesa estava pronta e a massa poderia ser concluída no forno elétrico.
Laura sonhou com a cara atrevida do Aldo abrindo a caixa de trufas que ela mesma havia feito de presente para ele. Nunca tinha visto alguém trocar o café da manhã por chocolate ou substituir o almoço por tabletes aerados. Sentia nos beijos dele uma doçura de desvario e entregava-se ao assédio daquele amor cor de cacau e de prazer. Aldo era seu verdadeiro sentido de vida; rodeava-o como coisa de comer e saboreava-o como um vício. 

Tinha lido durante a semana que haveria uma multa para os condôminos que gritassem pela janela na hora dos gols. Assustadíssima, Laura, ainda meio sonolenta, percebeu que o grito não vinha de fora: estava bem ali a seu lado, sentado sobre a gola de lã e  devorava a última trufa da caixinha. No placar, o Palmeiras ganhava por dois a zero.
(imagem: http://www.google.com.br/imgres)

16 comentários:

  1. Dois meses e meio de espera e ele chega, no dia dos namorados e... ao invés de acordá-la com doces beijos, senta para ver o Palmeiras, devorando a caixa de chocolates que ela se esperara tanto em preparar... Vai ver que nem reparou na beleza da fita que o envolvia...

    Minha santa avozinha diris: HOMENS!!!

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  2. :o

    Tadinha... às vezes é melhor ficar só, do que ainda mais só estando acompanhado.

    A vida e suas pequeninas tragédias...

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  3. Apesar do chuveiro que não ajudou, as expectativas para o dia já eram felizes. Faziam parte do encontro que se daria e que seria promissor. O importante é a criação das fantasias, mesmo que´às vezes não se realizem.
    Bj RUTH

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  4. Dulce:
    Tenho certeza de que tinha até cartãozinho!
    Avós são mesmo muito sábias...
    Beijos


    Amanda:
    Solidão ao quadrado não dá, concordo com você.
    Beijos


    Ru:
    Às vezes as ilusões ajudam mesmo. Mas não salvam.
    Beijos

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  5. Oi, Maria Teresa! Que delícia de texto para o Dia dos Namorados... Aliás, alguns pormenores me lembraram um casal que conheço - rs! Ah! e fiquei com água no boca com a descrição do bolo! Bjs e boa semana!

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  6. Cassia:
    Com todo este frio, dá vontade mesmo de um bolo com tudo o que é proibido, não é? Será que eu também conheço esse casal??
    Beijos

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  7. Teresa:
    Com certeza a preparação para o tão sonhado encontro foi a melhor parte do dia para Laura.O banho frio não valeu a pena...Aldo não mereceu tanto sacrifício.Coitada! Só uma coisa não o desmereceu por completo...era Palmeirense...rs !
    Beijo !!!!

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  8. Falando em expectativas, tinha outras ao ler sua narrativa. Mas a ficção também é espaço de desencontro entre quem lê e quem escreve, não é mesmo? Comamos bolos de chocolate e sorrentine amore, então!

    Um abraço.

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  9. Olá Maria Teresa,
    Cheguei ao fim fiquei perplexa...banho de água fria em duplicado!... Mas quanto ela não foi feliz nos preparativos!...
    Beijos,
    Manuela

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  10. Quanto carinho mal aproveitado.Quantas Lauras se viram nessa como espelhos recortados.Obstáculos, preparativos, escolhas detalhadas para um torcedor distraído e inveterado.
    È bom mostrar-se o outro lado das moedas carimbadas.
    Gostei demais,
    Bjos,
    Calu

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  11. Roseli:
    Ai esse Verdão...
    Beijos


    Halem:
    Eram boas suas expectativas? De verdade?
    Grande abraço


    Manuela:
    Vale a máxima: "o melhor da festa é esperar por ela". De fato!
    Beijos


    Calu:
    O problema é que as moedas carimbadas passam despercebidas e embaralham-se e camuflam-se com grande astúcia...Quem as vê?
    Beijos

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  12. Puxa vida, que desilusão....que desespero!!!
    É assim a vida, nem sempre as coisas correm
    como era nosso desejo.
    Mas que deve ter sido um momento de desespero
    sim.
    Beijinhos e um pedido: sorria.
    Irene

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  13. Que delícia de texto, Maria Teresa! A começar pelo lado gourmet, que se mistura com esse amor de chocolate. Parece que as imagens estão todas diante de nossos olhos, como num filme bem-humorado.

    Beijo beijo grande pra você.

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  14. Irene:
    Nada como satisfazer um pedido desses!
    Beijo


    Dade:
    Tenho visto tantos filmes terríveis, que me inspiram cada pesadelo, que um filme bem-humorado é muito bem-vindo. Ainda bem que você o viu assim.
    Beijos

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  15. Oi, poetisa querida!

    Obrigada pela visita e um grande e carinhoso abraço!

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  16. Limara:
    Eu que agradeço seu carinho por aqui.
    Beijos

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