domingo, 1 de maio de 2011

Noivas

Nunca teve tempo de envelhecer. Sentada com a cabeça entre as mãos, aguardava, olhando detidamente uma formiga graúda e corajosa com um pedaço de migalha gigantesca às costas; devia ter força descomunal e andava com pisadas firmes com suas patinhas pretíssimas.  Comparou-se à formiga achando uma enorme graça e até certa petulância de sua parte, não era à toa que sempre arrastava todos atrás de si, capturados por sua energia e por sua autoestima. Difícil ficar ali, naquele sofá de capa surrada, esperando, esperando.
Nunca perdera aquela mania de pegar uma música para não tirar da boca e o Dancing Queen do ABBA não saía de sua cabeça. Ficou com vontade de um pão tostado com manteiga gelada, até podia sentir o cheiro de todas as manhãs: preparou duas fatias de pão de linhaça  bem gordas para colocar na máquina e fez um café duplo na cafeteira. Arrumou tudo na bandejinha de couro onde estava escrito expresso, junto com uma metade de papaia de um    laranja vivíssimo.  Voltou para o sofá sem ligar para a sucessão de propagandas interessantes que conhecia de cor e sentou-se com postura compatível com aquele momento solene que não começava nunca.
Nunca seus olhos úmidos e escuros brilharam tanto de ansiedade, não, nunca não. Quando a protagonista era ela, ou mesmo sua única filha, talvez a emoção tivesse sido parecida. Passou a mão pelas varizes e sentiu doer-se por dentro. Os lábios ficaram mais finos – não se lembrava de tê-los algum dia carnudos, apesar de todos os truques - tinha lido em algum lugar que lábios finos talvez fossem consequência de palavras engolidas com casca e tudo. As pessoas não estariam mais interessadas em conhecê-la?
Nunca. Mastigando com vagar os grãozinhos de linhaça, percebeu-se caminhando pela abadia sob os olhares atentos aos menores detalhes, princesa encantada.  O vestido tinha mangas longas e rendadas e o cabelo estava solto, vívido. A marcha nupcial acompanhava  seus passos e as batidas cadenciadas de seu coração – por que o ritmo seria outro? O percurso era longo, sabia de antemão, mas a vida nunca lhe seria gradeada e reta. Nunca. Uma outra formiga mais miúda carregava uma pequena migalha de pão, mas a manteiga não estava mais gelada.

(imagem: http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://donabibi.files.wordpress.com/2011/04)

14 comentários:

  1. Maria, antes de reler mil vezes esse novo texto e montar-lhe o sentido das mais diversificadas maneira possíveis, me pergunto com a pergunta de quem laça sobre o texto o primeiro olhar: seria a formiga de fato corajosa ou ainda não tivera tempo disponivel para refletir e ser covarde? Não tivera tempo a dama eternamente esperançosa de envelhecer ou decidira não ter coragem?

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  2. P.S. Se não teve tempo de ser covarde como poderiamos dizer que se trata mesmo de determinação e autoestima?
    Estaria vc a nos dizer que uma é a mesma face da outra?

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  3. Pois é, minha amiga... quantas e quantas mulheres caminharam pelo tapete vermelho daquela Abadia, passo a passo, princesas de contos de fadas, vivendo a magia de um momento que nem era delas...
    Beijos e uma boa semana para você.

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  4. Casamentos estão na ordem do dia, com o casamentão do príncipe e sua plebeia/princesa.
    Teu texto oferece muitos sentidos, mas o que primeiro me chama a atenção é o envelhecimento, esse beco sem saída, a importância da coragem e a de manter a forma física para não desmoronar muito depressa à vista de todo mundo.
    Me vi tomando aquele café. Mas não assisti à cerimônia, cedo demais pra me tirar da cama.

    Beijo e carinho.

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  5. Não existimos mais que os nossos sonhos.

    Beijo.

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  6. À Italiana:
    Quando a ideia vai surgindo e tomando forma por escrito, não imaginamos esses tantos atalhos; achei interessante você ter visto o texto com essa "angulosidade". Só que ele já não me pertence, tem que andar com as próprias pernas...
    Beijos


    Dulce:
    As emoções também se controem, ainda bem, não é? Importante é não nos levarmos, neste mundo real/fictício, às tragédias tantas a que presenciamos aqui e ali!
    Beijos


    Dade:
    Até estava acordada, mas também não vi na hora. Agora, o café estava uma delícia!
    Beijos


    Manuel:
    Gosto muito da forma concisa que você utiliza para dizer tudo.
    Grande abraço

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  7. No mesmo local onde se passou a missa de despedida da mae.

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  8. Maria Luiza, sei... Era você "viajando"...

    Eu também assisti. Não "viajei" muito, mas achei lindo!

    Beijos!

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  9. Anônimo:
    São as coincidências da vida...
    Abraços


    Limara:
    Sabia que iria encontrar todos os detalhes lá com você...
    Beijos

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  10. O melhor da festa é, sem dúvida, essa parada para refletir, para concentrar-se, mesmo que ,para isso o vai e vem da formiga participasse com sua forma indiscreta. O sonho, o sonho seria brevemente, uma realidade. Por quÊ não vivê-lo antecipadamente?

    Ruth Bj

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  11. Entre o sonho e a realidade, O TEXTO! E a "porta" aberta para a verdade da vida!
    Delicioso, seu escrito, que nem "pão tostado com manteiga gelada" derretido em café duplo!
    Beijinho

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  12. Ru:
    Sonho vivido aos bocados, não é? Isso também é bom.
    Beijo carinhoso


    Caro Quicas:
    Adoro manteiga gelada. O elogio me deixou muito feliz.
    Grande abraço

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  13. Não assisti...mas vi aí nesse sofá o que havia para ver...parece um conto de fadas...quando eu acreditava em fadas...formigas com oportunidades diferentes...eu também gosto de manteiga gelada e fiquei com pena da formiga, que levava a migalha sem mais nada!
    Beijos,
    Manuela

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  14. Verdade, Manuela! Mas ela é pequenina, ainda vai saber encontrar uma migalha que valha a pena!
    Beijo carinhoso pra você.

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