Nunca teve tempo de envelhecer. Sentada com a cabeça entre as mãos, aguardava, olhando detidamente uma formiga graúda e corajosa com um pedaço de migalha gigantesca às costas; devia ter força descomunal e andava com pisadas firmes com suas patinhas pretíssimas. Comparou-se à formiga achando uma enorme graça e até certa petulância de sua parte, não era à toa que sempre arrastava todos atrás de si, capturados por sua energia e por sua autoestima. Difícil ficar ali, naquele sofá de capa surrada, esperando, esperando.
Nunca perdera aquela mania de pegar uma música para não tirar da boca e o Dancing Queen do ABBA não saía de sua cabeça. Ficou com vontade de um pão tostado com manteiga gelada, até podia sentir o cheiro de todas as manhãs: preparou duas fatias de pão de linhaça bem gordas para colocar na máquina e fez um café duplo na cafeteira. Arrumou tudo na bandejinha de couro onde estava escrito expresso, junto com uma metade de papaia de um laranja vivíssimo. Voltou para o sofá sem ligar para a sucessão de propagandas interessantes que conhecia de cor e sentou-se com postura compatível com aquele momento solene que não começava nunca.
Nunca seus olhos úmidos e escuros brilharam tanto de ansiedade, não, nunca não. Quando a protagonista era ela, ou mesmo sua única filha, talvez a emoção tivesse sido parecida. Passou a mão pelas varizes e sentiu doer-se por dentro. Os lábios ficaram mais finos – não se lembrava de tê-los algum dia carnudos, apesar de todos os truques - tinha lido em algum lugar que lábios finos talvez fossem consequência de palavras engolidas com casca e tudo. As pessoas não estariam mais interessadas em conhecê-la?
Nunca. Mastigando com vagar os grãozinhos de linhaça, percebeu-se caminhando pela abadia sob os olhares atentos aos menores detalhes, princesa encantada. O vestido tinha mangas longas e rendadas e o cabelo estava solto, vívido. A marcha nupcial acompanhava seus passos e as batidas cadenciadas de seu coração – por que o ritmo seria outro? O percurso era longo, sabia de antemão, mas a vida nunca lhe seria gradeada e reta. Nunca. Uma outra formiga mais miúda carregava uma pequena migalha de pão, mas a manteiga não estava mais gelada.
(imagem: http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://donabibi.files.wordpress.com/2011/04)
Maria, antes de reler mil vezes esse novo texto e montar-lhe o sentido das mais diversificadas maneira possíveis, me pergunto com a pergunta de quem laça sobre o texto o primeiro olhar: seria a formiga de fato corajosa ou ainda não tivera tempo disponivel para refletir e ser covarde? Não tivera tempo a dama eternamente esperançosa de envelhecer ou decidira não ter coragem?
ResponderExcluirP.S. Se não teve tempo de ser covarde como poderiamos dizer que se trata mesmo de determinação e autoestima?
ResponderExcluirEstaria vc a nos dizer que uma é a mesma face da outra?
Pois é, minha amiga... quantas e quantas mulheres caminharam pelo tapete vermelho daquela Abadia, passo a passo, princesas de contos de fadas, vivendo a magia de um momento que nem era delas...
ResponderExcluirBeijos e uma boa semana para você.
Casamentos estão na ordem do dia, com o casamentão do príncipe e sua plebeia/princesa.
ResponderExcluirTeu texto oferece muitos sentidos, mas o que primeiro me chama a atenção é o envelhecimento, esse beco sem saída, a importância da coragem e a de manter a forma física para não desmoronar muito depressa à vista de todo mundo.
Me vi tomando aquele café. Mas não assisti à cerimônia, cedo demais pra me tirar da cama.
Beijo e carinho.
Não existimos mais que os nossos sonhos.
ResponderExcluirBeijo.
À Italiana:
ResponderExcluirQuando a ideia vai surgindo e tomando forma por escrito, não imaginamos esses tantos atalhos; achei interessante você ter visto o texto com essa "angulosidade". Só que ele já não me pertence, tem que andar com as próprias pernas...
Beijos
Dulce:
As emoções também se controem, ainda bem, não é? Importante é não nos levarmos, neste mundo real/fictício, às tragédias tantas a que presenciamos aqui e ali!
Beijos
Dade:
Até estava acordada, mas também não vi na hora. Agora, o café estava uma delícia!
Beijos
Manuel:
Gosto muito da forma concisa que você utiliza para dizer tudo.
Grande abraço
No mesmo local onde se passou a missa de despedida da mae.
ResponderExcluirMaria Luiza, sei... Era você "viajando"...
ResponderExcluirEu também assisti. Não "viajei" muito, mas achei lindo!
Beijos!
Anônimo:
ResponderExcluirSão as coincidências da vida...
Abraços
Limara:
Sabia que iria encontrar todos os detalhes lá com você...
Beijos
O melhor da festa é, sem dúvida, essa parada para refletir, para concentrar-se, mesmo que ,para isso o vai e vem da formiga participasse com sua forma indiscreta. O sonho, o sonho seria brevemente, uma realidade. Por quÊ não vivê-lo antecipadamente?
ResponderExcluirRuth Bj
Entre o sonho e a realidade, O TEXTO! E a "porta" aberta para a verdade da vida!
ResponderExcluirDelicioso, seu escrito, que nem "pão tostado com manteiga gelada" derretido em café duplo!
Beijinho
Ru:
ResponderExcluirSonho vivido aos bocados, não é? Isso também é bom.
Beijo carinhoso
Caro Quicas:
Adoro manteiga gelada. O elogio me deixou muito feliz.
Grande abraço
Não assisti...mas vi aí nesse sofá o que havia para ver...parece um conto de fadas...quando eu acreditava em fadas...formigas com oportunidades diferentes...eu também gosto de manteiga gelada e fiquei com pena da formiga, que levava a migalha sem mais nada!
ResponderExcluirBeijos,
Manuela
Verdade, Manuela! Mas ela é pequenina, ainda vai saber encontrar uma migalha que valha a pena!
ResponderExcluirBeijo carinhoso pra você.