segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Odisseia


Roubou por uns dias o livro do tio. Não que tivesse intenção de ficar com ele para sempre; queria apenas conferir as letras douradas na capa vermelha, provar o cheiro das páginas alvíssimas, onde as letras dançavam com assanhamento cheio de sorrisos. O que estava ali era o que menos importava aos seus dez anos mais que completos, mas as palavras não existem apenas para serem entendidas.

Esperou todos apagarem as luzes enrolando no dedo quase até sangrar o cabelo em forma de mola. Na rede da varanda distraía-se com os latidos da cadela, impaciente com os oito filhotes ainda cegos e de bocas sempre abertas em ós. Preferiu andar descalça até o escritório ignorando o choro da cachorrinha bebê que zanzava no escuro com personalidade, longe do leite e dos outros. Eram duas então invadindo com audácia os momentos que se abriam no meio e ao comprido como uma ervilha nova. Resolveu levá-la consigo para que ela lhe abraçasse a ansiedade e lambesse suas mãos suadas. Suspiro. Mais alguns cachos enrolados e mais uma dificuldade: teria que abrir a maçaneta redonda que fazia estardalhaço e rangia como se fosse inimiga de meninas e de palavras.

“Irresistível” – tinha escutado o tio dizer; aquela era uma edição especial, especialíssima. Com taquicardia que quase a deixava vesga, ouviu o caso dos guerreiros transformados em porcos, girando o dedo nos cabelos e chegando mais perto da mesa de madeira escura onde se encontravam as palavras que escondiam todos aqueles feitiços. A cachorrinha dormira no seu colo; ela se chamaria Circe. Nas paredes povoadas de personagens percebeu alguns sinais de aprovação, como se aquele nome em relevo da página 323 tivesse sido aceito quase por unanimidade. Suspiro. Passou a ponta dos dedos pelas letras, depois de ter enxugado a mão disponível na camisola de algodão. A cachorrinha teve um sobressalto e enroscando a patinha nos cachos em espiral, quase a fez suspirar mais alto e ficar vesga de novo.

Mais tarde soube que às vezes o furto compensa se houver boa intenção. Percorrer aquelas linhas e sentir a textura das palavras justificou a coragem enorme do medo que a levou a fazer a vida ficar de pé no chão, oculta por elipse diante de um livro de capa vermelha. Livro abraçado por uma menina meio estrábica de cabelo enrolado e por sua Circe que sonhava com deuses e gigantes. Todos gregos.

10 comentários:

  1. Certamente a garota não sabia que também nela vibravam acordes da epopeia grega... Foi só usar de artifício e descobriu... Parabéns - BJ RUTH

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  2. Maravilha de texto! Sempre vale a pena passar por aqui.
    Abraço grande.

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  3. Um texto simplesmente incrível, perfeito... Para se ler, reler, pensar.
    Beijos

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  4. Deleito-me ao ler o que a Maria Teresa escreve, da forma como escreve. Aqui a descoberta da beleza do livro e do fascínio do que se pode encontrar lá dentro, o mistério a decifrar.
    Gostaria de ser Circe, a cachorrinha, não a deusa dos feitiços!...rsrsrs
    Beijinhos,
    Manú

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  5. Ru:
    A menina atrevida saltou do texto? Fico feliz por isso.
    Beijos


    Eduardo:
    Agradeço-lhe a visita sempre tão gentil.
    Abraços


    Dulce:
    Obrigada por suas palavras abotoadas de carinho.
    Beijos

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  6. Manuela:
    Fico feliz de que a cachorrinha a tenha enfeitiçado!! Muito obrigada pela visita sempre tão carinhosa.
    Beijos

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  7. A um roubo desses, todos perdoam, hehehe... "Circe", nome de cachorro? É, mas Calipso talvez fosse ainda mais inusitado...

    E essa frase, hein, que achado:"...mas as palavras não existem apenas para serem entendidas".

    Um abraço.

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  8. Halem:
    A cachorrinha é fêmea. E tão cheia de feitiços...
    Obrigada por aparecer; sempre gosto de suas visitas.
    Abraços

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  9. Roubo assim não só tem que ser perdoado como nem pode ser considerado um roubo. Que ótimo texto, Maria Teresa. Sempre mutio bom vir aqui.
    Beijo!

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  10. Dade: eu é que fiquei feliz! Tinha certeza de que o roubo teria perdão.
    Beijo carinhoso

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