segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Compadrio

Digitou uma frase inteira sem adjetivos na velocidade do vento que entrava pela janela e espalhava todos aqueles papéis derramados na mesa de madeira de demolição. Ficou com saudade do tempo em que escrevia cartas em papéis cuidadosamente escolhidos e desenhava as palavras para que as letras tivessem todas o mesmo tamanho; sentiu-se um grande tolo ao pensar que um dia já tivera esse tipo de preocupação e continuou se lembrando daquela frase que ela lhe dissera ao sair batendo a porta e assustando os pássaros de peito amarelo que faziam ninho nos enormes eucaliptos: “o problema é que você só serve para ficar sozinho”.

Nunca se sentira isolado com todos aqueles livros que lhe faziam companhia e que lhe preenchiam as tardes longas – como as tardes eram longas; passava horas e horas transportando-se a lugares remotos onde não era atropelado por palavras ásperas, por olhares acusadores, por ironias elípticas. Se ler é de fato como comer sozinho, com aquele mesmo sentido de voracidade, isso ela jamais absorvera, jamais descobrira cores, texturas e cheiros que a palavra exala para seduzir e arrebatar. A linguagem possui seus próprios ritmos que a mão vai registrando e registrando como se escutasse às escondidas sempre que tem uma chance para que o papel vá absorvendo a enxurrada de urgências delicadas que se vão amalgamando num escarcéu de ondas redondas e grávidas. Entretanto, o prazer como o riso não atinge seu momento de plenitude senão quando partilhado: as frases curtas ou longas devem percorrer um cordão invisível até o outro como se fugissem sem sapatos para serem ouvidas devagar.

Diante da tela do computador ele ainda digitava, quando os dedos ligeiros pararam de percorrer o teclado e ficaram com aqueles nós arroxeados, como sempre ocorria quando a tensão crescia por dentro e queimava; felizmente, os eucaliptos estavam quietos e o abraçavam; eram já parceiros e sabiam que a qualquer momento ela viria visitá-los em sonhos.

9 comentários:

  1. Maria Teresa,

    Seus botões estão cada vez melhor costurados. Parabéns e obrigado pelo comentário lá no meu sítio. Abraços!

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  2. Maria Teresa,
    O compadrio será da escrita e da leitura?
    Escrever com aquele preciosismo de quem tem que escrever num papel e com uma caneta especial, era uma constante em mim. Principalmente cartas de amor, era tempo disso e, era uma forma de contacto especial, as cartas que eu recebia podiam andar sempre comigo, podiam até ir dormir comigo! Estes novos meios de escrita em nada se comparam e custou-me a habituar. Quanto à leitura, presentemente já leio muito através do computador, mas o prazer do contacto táctil com o livro é muito diferente.
    A forma como escreve é preciosa.
    Bjs,
    Manuela

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  3. Marcelo:
    Muito obrigada. A costura tira proveito de sua visita carinhosa.
    Abraços


    Manuela:
    Nem me fale! E pensar que hoje as pessoas não sabem que as cartas de amor manuscritas também tinham perfume e podiam ser transportadas cheias de beijos de lá para cá!
    Beijos

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  4. E daqui,vão mais agradecimentos pelos seus escritos tão repletos de vida, saudade, companhia e que tanto bem me fazem...Um beijo cheio de carinho.

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  5. Querida amiga:
    Fazem bem essas suas visitas tão ternas, que me enchem de alegria.
    Um beijo muito carinhoso

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  6. Amiga Teresa,

    Peço desculpa pela minha ausência.
    Sabe que aqui é Verão, a minha estação do ano predilecta, não paro tanto no computador e quando o faço...o tempo não me chega! Logicamente.
    Sei que me perdoará :)

    Amiga, até para ler os meus livros me falta o tempo. Eu que os adoro...mas que não me ostracizaria a esse ponto, nunca, preciso demais de falar e estar com as pessoas que me dizem algo, que sabem conversar e ser amigas.

    Lembro-me das minhas aulas de caligrafia, era aluna de 20 valores !!!
    Saí ao meu pai, ele tinha uma caligrafia lindíssima, invejável.
    Escrevi muitas cartas, muitas de amor também ...perfumadas e com marcas dos meus lábios de bâton :)))

    Lembro-me ainda, da desilusão enorme que tive com um namorada meu quando ele me escreveu a sua primeira carta...
    Ele era ileterado... acabou logo ali o namoro:))))

    Adorei, como sempre o texto, parabéns!

    Beijinhos

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  7. Querida Fernanda:
    Foi-se o tempo da letra bonita, bordada mesmo. Tempo de personalidade, não é?
    Adoro suas visitas.
    Beijo carinhoso.

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  8. Que delícia poder escrever, e com uma caligrafia caprichada, (como sempre foi a minha, modéstia à parte),deixar no papel impressões, saudações, cumprimentos,recordações. Ainda bem que pertenço a essa geração que aos poucos se extingue porque não tem luz própria e não sabe o que é manifestar-se através da palavra escrita. Já nem se fala da felicidade de se ter sempre à mão um bom livro a plenar-nos a vida de novidades, descobertas e renovadas emoções. O livro foi sempre realmente o meu melhor amigo e apenas sinto não ter registrado sobre tudo o que li e sobre tudo o que partilhei através da leitura. Que compadrio perfeito... Beijos de sua mãe, RUTH

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  9. Ru:
    E eu fui sempre a que colheu os frutos desse compadrio! Sou-lhe eternamente grata por isso!
    Beijos

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