quinta-feira, 1 de julho de 2010

Travessia


Ontem eu vi a Lygia. Bem na entrada da Sala São Paulo, sentada num pufe quadrado, com aquela sua fisionomia que conheço há tempo, plena de sensibilidade e de palavras. Acho mesmo que ela é vestida de palavras, muitas palavras com que tão harmoniosamente vai arquitetando e construindo seus enredos, nossos enredos, pois eles se desprendem dela e grudam em nós. Foi assim com os anõezinhos de pedra que formavam uma ciranda no jardim; foi assim com as Meninas, as três terríveis meninas que falavam ao mesmo tempo, cheias de malabarismos com aquelas palavras que pulavam de uma para a outra, para a outra. Sentia-me a quarta menina, mas a Lygia não havia pensado nessa possibilidade. Gostaria de ter falado com ela sobre isso. E os contos? Quantos. Aquele das formigas que entravam e saíam da caixa, com antenas de quem já vira muito, pois eram capazes de passar pra lá e pra cá e nos surpreender com um cheiro estranhíssimo, intimidador. Lembrar dele assusta, mas não tanto como a história do ex-namorado ciumento, que elabora com requintes um último encontro com a moça que já o descartara e a trancafia num túmulo ermo de um cemitério abandonado. Para que ela veja o mais lindo pôr do sol do mundo! Senti calafrios! Sinto-os até agora!
Mas ontem foi dia de ópera. Mais tarde, durante a melodia portentosa e de exuberância acústica, fiquei imaginando as palavras rodeando a Lygia e olhando para ela com olhos arregalados, de pupilas pululando. Então me lembrei do que ela dissera em 2004, quando da morte de sua querida amiga Hilda Hilst: “a amizade é uma travessia”. De fato: os amigos verdadeiros são os que não se tornam transparentes, com o passar do tempo; não são sombras que fingem não se ver na pequenez de sua insignificância, mas se encontram no caminho, se abraçam e se comovem.
Ontem eu revi alguns amigos e também encontrei minha querida Lygia Fagundes Telles, a escritora que se veste de palavras e que sorriu para mim quando recebeu um beijo de presente.


8 comentários:

  1. Mas que noite mágica, Maria Teresa! Que privilégio estar com essa mulher que nos traz tanto encanto com suas palavras, com sua sensibilidade, com suas personagens... Ah, que invejinha... (rs)
    Beijos

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  2. Maria Teresa.
    Que delícia de encontro, emocionante.
    É a prova de que os semelhantes se atraem.

    Bjs

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  3. Dulce:
    Foi mesmo um privilégio. Uma alegria sem fim. E depois ainda houve Verdi,, Puccini, Carlos Gomes...
    Beijo carinhoso

    Vera:
    Delícia foi o comentário; imagine!
    Beijo carinhoso

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  4. Lygia é dessas escritoras que acabamos por querer bem, pela sensibilidade e pelos bons momentos que nos dá de presente e os personagens que impressionam a gente pela autenticidade. Bom encontro.

    Beijo

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  5. Dade:
    De fato. Alguns escritores, junto com a admiração pelo conteúdo expressivo de sua obra, fazem com que sintamos por eles essa espécie de carinho e de desvelo. Tornamo-nos seus protetores.
    Beijo

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  6. Maria Teresa,
    É um grande prazer ler os seus textos. Já li Lygia há uns anos, uma excelente escritora, do que eu tenho pena é que não haja por cá a divulgação merecida aos escritores brasileiros. As editoras vão muito por modas, não investem no que é bom, mas no que é mais vendável, a literatura americana, os vampiros, coisas desse género!...EUA invade, tal como no cinema!..
    Além desse afortunado encontro, ópera, mas que maravilha!..
    Beijinhos e uma boa semana,
    Manuela

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  7. (Quase) vivi com você o lindo relato! Um privilégio mesmo ver de perto uma criatura como Lygia. Sim, é uma criatura, não uma pessoa, uma mulher. Criatura de criação. Tu também, ora bolas!
    Um beijo!

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  8. Manuela:
    Também aqui não são tão divulgados alguns bons escritores. Esse modismo com cara de globalização colabora com a superficialidade da comunicação rápida, típica deste nosso tempo. Até os livros didáticos apresentam textos em fragmentos e as apostilas, as sebentas daí, têm vendagem muito mais expressiva e lotam prateleiras.
    Beoijos


    Nivaldete:
    As criaturas distanciam-se das pessoas comuns, de fato. Acho que por isso causam comoção e perplexidade. Agora, quanto ao final de seu comentário, isso fica por conta dessa sua delicadeza acumulada já desse tempo todo!
    Beijos

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