Tinha voz pequenina quase asfixiada pelas paredes urbanas e vivia num mundo de quimeras, meio alienada dos dramas rotineiramente vomitados pelas páginas dos noticiários. Sofria de sonhadorismo e ausentava-se da rotina fuliginosa, sem mesmo se dar conta disso. Naquele dia, no entanto, resolvera que faria uma extravagância: compraria onze lírios para colocar no vaso meio roto da mesa de madeira da cozinha. Estava feliz, de alma esterilizada e os enternurados traços de seu rosto rugoso desenvelheceram a olhos vistos. O dia amanhecera lisonjeiro, apesar das nódoas salpicadas nas nuvens que prometiam chuva, mas ela fazia de conta que aquilo não atrapalharia a chegada do neto cheio de histórias longínquas, acumuladas durante aqueles intermináveis onze anos. Tinham-lhe dito que ele agora era um craque e que dominava a jabulani melhor que qualquer outro, e ela ria seu riso contraído, lembrando-se do dia em que o senhor bem vestido de fala cantada levara-o de seus braços, o seu menino, a sua única família. Arrumou todos os vidros de doce na prateleira, com os rótulos bem acertados, será que ele ainda preferia doce de leite? Tratou o melhor que pôde de suas mãos calejadas de tanto tacho, vestiu-se e foi sentar na muretinha para aguardar, afinal, era o que tinha aprendido a fazer tão bem. Estava adiantada e não deu atenção às pessoas que passavam pela rua, apressadas, chamando-a e chamando-a. Inútil quererem que ela saísse dali, daquele posto de sentinela de onde podia avistar as onze flores, brancas branquíssimas, uma para cada ano de espera. Foi assim que o rugido das águas se tornou melodia suave a seus ouvidos e que ela continuou sentada na muretinha que se desfez. A enxurrada levou tudo, todos os vidros de doce de abóbora, de coco e de laranja. Levou também os de doce de leite e todos os sonhos. No dia seguinte, alguns lírios apareceram boiando na lama interminável que o serviço de limpeza da prefeitura insistia em recolher. Além da Copa, aquele também era ano de eleição.
Olá Maria Teresa,
ResponderExcluirDetalhes cheios de preciosismo. Impressionante e mesmo assim, uma morte cheia de expectativas de entusiasmo e afecto, na vida. Num texto pequeno e incisivo o pensamento divaga e as palavras ficam bloqueadas!...
Pequena maravilha, não consigo dizer mais nada!
Beijinhos,
Manuela
Tantas esperanças perdidas, levadas pela água, sem sequer darem a pobre alma a alegria de rever seu neto. São as crueldades que a vida por vezes joga sobre as criaturas... Um desfecho imensamente triste, para uma história tão lindamente escrita!...
ResponderExcluirbeijos
Tanto acontecimento em tão breve texto! E um final que nos acorda do mergulho nele... porque aponta para... e tudo pára.
ResponderExcluirUm grande abraço.
Manuela:
ResponderExcluirObrigadíssima por seu comentário tão gentil.
Beijo carinhoso
Dulce:
Temos visto tanta tristeza causada pelo furor da natureza, não é? Fico imaginando quanto sonho que despenca e que sucumbe por aí...
Beijo carinhoso
Nivaldete:
Fico feliz de saber que o texto proporcionou esse mergulho. Às vezes as palavras são mais duras que as próprias tragédias que, de tão frequentes, tornam-se banalizadas e nem machucam mais.
Beijo carinhoso
Olá Teresa,
ResponderExcluirLindo Texto! Confesso que prendeu minha atenção do começo até o fim...E que final! Torci para que a tragédia que estava anunciada não acontecesse...
Mas como nossos avós diziam :
-Teve uma morte bonita!
Se é que podemos chamar assim, não é ? É a vida!
beijos prá vc!
Roseli:
ResponderExcluirTorcemos sempre pelo final feliz, não é? Queremos essa felicidade aqui e nas fantasias que nos rodeiam e nas manchetes dos jornais e para todos aqueles com quem nos identificamos. Ou não. Pena que nem sempre aconteça assim...
Beijos carinhosos