domingo, 18 de julho de 2010

Chinelos

Leis, leis e mais leis. Lei que proíbe palmada em criança é uma das últimas novidades, ainda na fase de projeto. Lembrou-me uma notícia há algum tempo, com foto e tudo, de um menino preso com corrente ao pé da cama, pois a mãe tinha que trabalhar e preferia deixá-lo ali, longe das maldades e dos vícios do mundo. Na concepção materna, cuidado extremo, pois naquele espaço, as companhias poderiam contaminar o seu menino e transformá-lo num marginal. Atitude agressiva? Claro que sim: na alma daquela criança acuada, sementes de ódio poderiam germinar como um leque, evidenciando-lhe com minúcias fantasmas traiçoeiros dispostos a ocupar aquelas ausências do aparente desvelo. Faltaram à mãe do garoto acorrentado noções de educação que lhe permitissem enxergar as várias facetas do problema; faltou-lhe um espaço público onde seu pequeno pudesse aprender o sentido do respeito e da cidadania. Ela não lhe poderia dar o que não tinha e preferiu acorrentar o que imaginava ter sido seu um dia. Se o menino fosse hábil e encontrasse um prego por ali, que o libertasse de seu infortúnio, a mãe certamente sairia atrás dele com chinelo na mão e, se flagrada, poderia sofrer as penas da lei. Duplamente.

Em outras circunstâncias, outras mães, ocupadas com seus afazeres profissionais, em vez de acorrentarem seus filhos, proporcionam-lhes divertimentos como jogos preenchidos de lutas e de ataques, e saem para o trabalho com a certeza de que seus pimpolhos estarão dentro das grades protetoras de casa, felizes e satisfeitos com a destreza de quem encurrala, atira e mata cada vez com maior eficácia. Tudo virtualmente, claro. Na volta, na certa não precisam de chinelos e possivelmente não ligam para algumas respostadas, minimizadas por outros presentes de semelhante utilidade.

Num caso e noutro, o respeito se perdeu para sempre. Sem diálogo e sem raízes, aqueles valores essenciais que transformam uma criança num adulto amadurecido e apto a lutar por um mundo, onde a dignidade ocupa lugar de honra, estão quase extintos. O sentido de compaixão foi substituído pela estupidez sem fim que torna os homens cegos, que os faz criar leis e mais leis supérfluas para coibir o que já se espalhou como erva daninha. Bom senso não se cria com legislação feroz, mas com diligência e ternura. Os olhos devem aprender a ver fundo e isso só é possível se encontrarem outros olhos. Olhos sábios e plenos de luz só procuram chinelos para deixar as pisadas mais macias e a vida mais ordeira, mais calma, mais humana.


11 comentários:

  1. Amiga Teresa!

    É sempre um enorme prazer ler os seus textos.
    Depois estamos sempre de acordo, mesmo!
    É incrível como hoje em dia se abandonam as crianças e se esperam delas depois milagres impossíveis.

    Deixar os filhos dentro de casa sozinhos, com video games cheios da mais grosseira violência, em que eles matam e ninguém morre, é de bradar aos Céus! Cria nas crianças noções erradas do valor real da vida.
    Sujeitar um filho a uma prisão, coisa que nem o animal tolera, mesmo que pelas razões apontadas e em acto de desespero, é outro erro grosseiro, desumano.
    Só pode dar em raiva e ódio.

    Amiga, por alguma razão eu deixei a grande cidade, a minha carreira profissional em pleno auge, aos 40 anos de idade... eu preferi ser mãe e esposa a tempo inteiro!
    Passei se uma vida onde não faltavam recursos materiais mas onde as carências afectivas já eram notórias.
    Prescinde de muitas coisas supérfluas, fomos e somos todos muito mais felizes hoje.

    A vida tem vários cursos...

    Como sempre, é um prazer enorme ler os seus textos.
    Beijinhos

    Na Casa do Rau

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  2. Talvez recursos demais ou de menos tornem muito mais difícil a tarefa, já de si bem árdua, de educar uma ou várias crianças. O essencial no entanto parece ser mesmo o amor e a compreensão. As dificuldades sempre existem, mas quando se ama encontram-se mais facilmente os caminhos para dar conta do recado. E como o amor sempre rende mais seus bons resultados, é bem possível que filhos amados venham a ser melhores pais. De qualquer modo, não é uma lei assim canhestra que vai resolver nada. Creio que vai piorar as coisas, criando talvez mais injustiças e separando as pessoas.

    Um ótimo texto, Maria Teresa.

    Beijo e ótima semana.

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  3. Cara Fernanda:
    Como é bom saber de nossas afinidades relacionadas às críticas do que é insuportável neste mundo, onde pessoas muitas vezes são transparentes aos olhos de muitos. Fico sempre muito feliz com suas ponderações.
    Grande abraço,
    MTeresa


    Dade:
    De fato, parece que tudo se resolve como num passe de mágica e com uma legislação que distancia mais ainda as pessoas da Justiça. Há carência de amor, de humanidade.
    Muito obrigada por seu comentário sempre tão generoso.
    Ótima semana para você também.
    Beijos,
    MTeresa

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  4. Maria Teresa, concordo que acorrentar não é a solução. Sou do tempo da chinelada no traseiro, qdo os argumentos esgotavam.
    Infelizmente é como citou, os pais deixam os filhos em casa jogando vídeo game, pensam ser seguro. Mas as crianças ficam agressivas, violentas devido a esses jogos de luta e guerra.
    Bons tempos qdo não existia tecnologia para o lazer.

    Bjs

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  5. A questão é difícil. A mãe pobre amarra o filho para que não caia na bandidagem. A mãe de classe média dá joguinhos eletrônicos ao seu. Joguinhos mostram violência. As TVs repetem à exaustão notícias sobre crimes. As novelas 'ensinam' como ser mau, fútil e ambicioso... E a bem da Liberdade de Expressão nada pode ser censurado. O ensino, por sua vez, coloca Ética e Meio Ambiente, por ex., como conhecimentos transversais (=secundários, não obrigatórios). E haja ensino tecnicista para formar consumidores. Até a 'religião' entra nesse jogo. Faz uns anos, vi um anúncio num jornal: "Vende-se uma igreja com serviço de som, 50 cadeiras e 100 fiéis cadastrados"...
    O que se perde é a dimensão espiritual da existência. Isso não interessa ao ensino escolar, muito menos ao universitário, que quer ser 'neutro', 'científico', e por aí vai... E nesse barco doido salve-se quem puder...
    Infelizmente está assim. Mas penso que, à semelhança de alguns hospitais que empregam saberes orientais como auxiliares dos processos de cura, a escola bem poderia fazê-lo também. A meditação, por ex., poderia ajudar a sanar esse hospício em que a sociedade tem se tornado.

    Fico por aqui...
    Um abraço, Maria Teresa!

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  6. Vera:
    De fato, também me lembro de quando um olhar mais duro era suficiente para o entendimento da cartilha toda da ética e do respeito. Sei também de histórias de quando professoras colocavam as crianças enfileiradas para que pudessem apanhar em sequência; exageros à parte, a agressividade dos pequenos, hoje, é gigantesca se comparada com a daqueles tempos. Claro que o mundo é outro, mas não é com leis impostas que se vai conseguir reverter situação calamitosa.
    Beijo carinhoso


    Nivaldete:
    É isso, "dimensão espiritual da existência"! Não existe espaço para ela, pois as coisas dominam e invadem mesmo as mais exíguas frestas; falta ventilação para que "o de dentro" possa sentir-se confortável e liberto para conhecer, criar e amar. Talvez a sapiência oriental seja mesmo o caminho.
    Obrigada pelo retorno sempre pertinente.
    Beijo

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  7. Oi M.T.
    É muito natural e saudável que se crie os filhos pro mundo. Prendê-los é muito prejudicial mesmo. Esse é o papel de todo pai e de toda mãe zelosos, que conhecem bem e assumem de forma verdadeira o seu papel diante dos filhos. São nossos grandes amigos...
    E feliz dia do amigo! Áqueles que estão acima das conveniencias, dos fracassos e sempre aceitam como somos.

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  8. Maria teresa, está simplesmente maravilhoso este seu texto e nem seria preciso acrescentar mais nada. Parabéns. Assino em baixo.
    Beijos

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  9. Caro anônimo:
    Seja bem-vindo por aqui. Obrigada por seu comentário e um feliz dia do amigo também para você!
    Abraços


    Dulce:
    Obrigada por seu retorno tão gentil. Como sempre!
    Beijo carinhoso e boa noite

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  10. M.Teresa,por certo v e seus irmãos não conheceram "essa função" do chinelo... e não havia também jogos na TV, no entanto se divertiam a granel e eram felizes. Será que vivemos um outro mundo? Por que mudaram tanto os valores? Graças a Deus,ficaram para nós, as melhores lembranças.
    Parabéns pelas suas reflexões e as dos seus amigos. BJ RU

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  11. Ru:
    Obrigada por ter feito um comentário tão doce e por ter colaborado para que eu não conhecesse aquela temida "função do chinelo".
    Beijos

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