quarta-feira, 1 de maio de 2013

Deia



No trajeto entre a escova e dentes e a cama, esbarro no braço do sofá azul e resolvo adiar o momento de me colocar, sozinha, embaixo das cobertas: o novo livro do Valter Hugo Mãe ainda está dentro da caixa de papelão, intocado. Desfeita deixá-lo escondido ali.

Sinto um vento gelado vindo da cozinha e vou até lá para pegar a faquinha de cabo preto; o durex grosso que o correio coloca não dá para abrir mesmo, sem alguma coisa cortante.  A faca não está no lugar, não está em lugar nenhum. Deia adora alterar os espaços das coisas. A camisola de cambraia faz os bicos de meus seios arrepiarem-se, serve mesmo a faca de pão. Uma gota de sangue quase mancha as páginas creme, para que grampo com todo o durex reforçado? “pousava a vassoura no chão, acumulava o pó num canto, via-o amontoar-se como uma obra a crescer”, sempre a mania de abrir a esmo e ler alguma coisa antes de começar direito sentada no sofá azul. E agora esse exagero burocrático de horas extras e de vida regrada. Deia não foi sempre respeitada ali? Ai, essa gaveta bagunçada! Não saiu sempre que precisou resolver isto ou aquilo? “uma mulher apaixonada não se põe debaixo de qualquer um, sabendo que vai ser usada como um traste sem vontade própria... ele não seria mais do que um oportunista, aproveitando-se da sua condição humilde de empregada para se pôr nela e acentuar a sua ignorância”.

Outra noite revirando na cama. Por que mexer em vespeiro? Uns pagam pelos outros, sem dúvida que é assim. Creche agora é responsabilidade minha, ai que frio neste tempo de outono! O menino tem a cara do pai, até a covinha na bochecha direita é igual, Deia diz. Criança risonha. Mas e o governo? E os impostos pagos? Por acaso uma casa de família é uma empresa como qualquer outra que lucra com o trabalho de seus funcionários? Quantas regras! Banco de horas! O tempo vai deglutindo nosso sentido de bom senso com boca escancarada. A vida passa em segredo assobiando canções sem som e ninguém se dá conta de tocar os instrumentos para ouvir a música.

Troco a camisola por um pijama de flanela daqueles quadriculados. O menino de Deia precisa de uns macacões mais quentes, é tempo de frio. Besteira insistir, o sono não vem. Macacões e uns brinquedos educativos. Tão risonho! Melhor começar a ler o livro.  A capa parece uma colcha de retalhos com vários pares de meias de tricô, de crochê. Cor só por fora. Livro que trata dos trabalhadores nasce com a sina de ser apenas preto e branco: “de noite, a maria da graça sonhava que às portas do céu se vendiam souvenirs da vida na terra...”


 (imagem: http://www.google.com.br)

2 comentários:

  1. Bela peça de ficção entranhada a um dilema que está na ordem do dia. Senti neste seu texto em particular um estilo muito próximo ao da Lygia Fagundes Telles. Sou muito fã da sua pena, Maria Teresa. Você sabe tudo.

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    1. Sabe aquela alegria que vai entrando de fininho e instalando-se grandona? Pois é assim que me sinto ao ler seus comentários, Marcelo! Muito obrigada. Grande abraço.

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