Considerava-me superior a
qualquer mocassim, tênis, bota, scarpin, sandália, galocha, louboutin de solado
vermelho, mas minha história, apesar de tão propagada por anos a fio, só agora
registro aqui. Já não é sem tempo.
Sou da era das fadas, ou melhor,
das abóboras com mania de fada e de varinhas de condão. Vivia sossegado, cheio
de brilho, acreditando piamente que cristal não é feito para revestimento,
invólucro ou coisa assim. Até o dia quando a fada de uma das morangas do
quintal da dona Vera resolveu notar meu fulgor e teve uma ideiazinha brega como
a de todas as fadinhas sem graça.
Tudo começou quando a filha de
dona Vera nasceu. Era um bebê tão rechonchudo, que não havia quem não gostasse
de apertar a dobrinha da perna, a bochecha, a mãozinha roliça. A vizinhança
toda só falava da redondice de Zizi, comparando-a com Alice, sua priminha
magricela sem furinhos na mão, de tão franzina. Zizi crescia gulosa e adorava
tudo rotundo como ela: brigadeiros, hambúrgueres, pizzas, empadinhas, bolos de
chocolate, ovos de Páscoa. Cada dia ficava mais gordinha. Um de seus
passatempos prediletos era ouvir dona Vera contando-lhe histórias de fadas e isso
lhe dava tanta ansiedade, que acompanhava os enredos saboreando balas de goma coloridas,
bem cobertinhas de açúcar cristal.
Tudo era cor-de-rosa para Zizi. Até o momento quando eu fui obrigado a aparecer.
É que tinha chegado a hora de Zizi arranjar um namorado e o jeito bolachudo da
menina começou a afastar todos os meninos da escola, do clube, do curso de
inglês, do Facebook. Por mais que Zizi usasse photoshop e fosse a jovenzinha
mais simpática do mundo, espantava qualquer um quando aparecia ao vivo numa
festa ou numa balada. Mas Zizi tinha experiência de histórias de fadas e
procurou uma moranga do quintal para morrer de chorar enquanto, com canudinho,
devorava latinhas de leite moça. A moranga ouviu mil vezes as queixas de Zizi,
seus sonhos de arranjar um príncipe encantado e, acreditando na sua condição de
fada-moranga, incluiu-me na sua lista predileta de transformações.
Temi pela minha sorte, mas
sapatinhos de cristal são tão frágeis, que fica sem sentido aparecerem nas
histórias discutindo os imprescindíveis finais felizes delas. Pois bem, a fada-abóbora
elaborou um plano cheio de truques com Zizi e lhe garantiu: no casamento de Alice, a prima magérrima, sua sorte mudaria; a única coisa que precisaria fazer era
entrar pelo corredor principal da igreja com a almofadinha das alianças.
Estaria com um vestido largo de tule para suas gordurinhas não ficarem
salientes e calçaria um sapatinho de cristal mágico, que a faria planar, como
se estivesse pisando em nuvens. Ou seja, ela teria que ME calçar!
Quase morri de dor de tanto
aperto. Os dedinhos redondíssimos de Zizi me asfixiavam e me faziam suar por
todos os meus poros inexistentes, pois essa não é mesmo característica dos
cristais. Mas sou corajoso e nunca gostei de deixar de cumprir metas até o fim,
então aguentei firme e caminhei pelo corredor atapetado, onde havia milhares de
pétalas perfumadas. Senti que minhas forças se iam acabando e tentei resistir e
resistir. Porém, quando Zizi foi subir o primeiro degrauzinho do altar,
escorreguei nas flores e senti metade de um alívio do tamanho do mundo, quando
voei por cima da noiva, do noivo, do padre e fui cair na mão do padroeiro da
igreja.
Zizi não se conformou com o erro
de planejamento da fada-abóbora e saiu correndo com um pé descalço, enquanto os
músicos do coral tocavam uma música moderníssima chamada “Ai se eu te pego”,
completamente atordoados. A noiva
desmaiou e o noivo, que nem parecia tão feliz de estar ali com aquela roupa
preta e branca estilo pinguim, saiu correndo atrás de Zizi, tropeçando no outro
pé de sapato de cristal jogado pelo meio do caminho. Ufa, até agora estou
respirando TOTALMENTE aliviado! Dizem que o ex-noivo de sua prima anoréxica ainda
não encontrou Zizi, pois a magia planadora não se perdeu mas, apesar de
gordinha, ela deve estar correndo pelo mundo e emagrecendo pouco a pouco de
tanto exercício. Por todos os lugares por onde Zizi passa, ouvi dizer que mais
noivos desistem de casar e vão atrás da menina descalça e esguia, que um dia me
calçou, os sapatinhos de cristal inventados por sua fada-abóbora sem graça nenhuma.
(imagem: http://www.google.com.br/imgres?q=sapatinhos+de+cristal)
Quando minha amiga Maria Teresa resolve dar asas à sua imaginação, sua prosa fica inigualável, pura magia, mesmo quando não fale de fadas, varinhas de condão, abóboras encantadas ou sapatinhos de Cristal!... Minha amiga, que texto mais lindo! Alegre, leve, deixando no ar, desde a primeira frase, muita curiosidade pelo que vamos encontrar pela frente...
ResponderExcluirPobre Zizi! De que adianta ser esquia agora? rs...
Beijos
Fábula fabulosa, diria eu. Inspiradora e inspirada :)
ResponderExcluirGrande beijo, Maria Teresa, e que venham mais fábulas!
Querida Dulce:
ResponderExcluirAh, fiquei muito feliz ao perceber que você gostou da saga da Zizi! Como foi bom saber disso!
Beijos carinhosos
Dade:
Obrigada pela acolhida. Daquelas que abraçam apertado.
Beijos
Mais uma aula de destreza narrativa, plena de imaginação. Prsente da super Maria Teresa. Parabéns, minha amiga.
ResponderExcluirObrigada meu super amigo Marcelo!
ResponderExcluirSuper beijo pra você.
Fico sempre encantada ao ler o que vai escrevendo e aqui não pude deixar de sorrir com as peripécias da Zizi, porque a Maria Teresa tem uma prosa cheia de subtilezas e sabe bem ir buscar as vivências que todos nós vivemos, as histórias de fadas! Por trás, pode ser feita outra leitura muito pertinente nos tempos de hoje, a anorexia/bulimia que conheço de perto!
ResponderExcluirObrigada por todas as histórias que vai deixando por aqui!
Beijinhosssss
Manu:
ResponderExcluirQue delícia de comentário. Muito obrigada.
Beijo carinhoso
Quem não sonha com uma cinderela mágica e afortunada? Zizi foi prática e inteligente; suas gorurinhas lhe salvaram o amor e a felicidade. Bj RUTH
ResponderExcluirOi, Maria Teresa! Puxa você é criativa, mesmo! Adorei!
ResponderExcluirBom fim de semana!
Ru:
ResponderExcluirObrigada pela visita sempre tão bem-vinda.
Beijos
Limara:
Obrigada. Os alinhavos daí sempre inspiram os daqui.
Beijo carinhoso