quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Estaturas

           
          


           “É uma menina de pernas compridas, como as do pai”, disse a médica no dia do ultrassom dos sete meses. “Ou como as minhas”, falou o avô espigado e todo cheio de si.
            Porque a escola tinha abolido a fila, Aninha não era a última, mas seria. E chorava de tristeza por sentar lá no fundo da classe, vendo tudo, mas sentindo-se pequena no universo de pernas reduzidas. 
Claro que foi escolhida para pivô no basquete, mas detestava fazer coisas fáceis e era tudo muito dentro do padrão naquele mundo de estaturas diminutas.
Olhava para as minissaias das amigas cheia de inveja. Chegou mesmo a rezar para acordar com a cara cheia de espinhas como a de Bebel, em troca dos seus irrisórios um metro e meio, mas amanheceu longilínea como todos os dias...
Só se sentia bem em casa, onde todos eram altos e não tinham nenhum problema em relação à desnecessidade de escadas ou banquinhos. Aninha não tinha quase amigos nem arranjava namorados. Preenchia mais espaço que os outros e isso não é muito vantajoso num contexto em que aquele que se sobressai vira suspeito ou digno de pena. É assim que as pessoas lidam com o que foge da rotina e de suas regras, com o que parece impor-se como qualitativamente superior.
            Começou a definhar e contrair-se, a andar meio dobrada sobre os livros enormes de seu curso de Medicina. Definiu a especialidade antes mesmo do vestibular: seria ortopedista. Quando estava já fazendo residência, finalmente apareceu a Aninha um namorado à altura: com ele podia usar salto sete e ainda ficar na ponta do pé para beijá-lo como todo mundo fazia. Roberto era um médico de modos nervosos, que sorria sem mostrar os dentes, o que combinava com seu jeito sempre muito quieto; quietude de muitos palmos de altura. No entanto, Aninha preferia o silêncio de companhia, apesar de sentir, no íntimo, que seu amor era solitário. E casou com Betão.
            Mas a vida não foi feita para quem não segue medidas: o marido grandalhão não se afinava com a delicadeza de sua identidade encolhida e  Aninha escondia-se da brutalidade daqueles pernões acostumados a pontapés; vivia cada vez mais definhada naquele raquitismo de energia que ainda lhe restava, ainda mais agora, que estava grávida. Nunca mais usou salto sete, mesmo depois que nasceram as meninas gêmeas, ruivas e de pernas longuíssimas. Cantava para elas com sua voz rouca e embalava-as, porém mesmo a melodia sussurrada e minúscula irritava Betão, tirava-o do sério. Aninha evitava-o, enrolando-se com as filhas numa bolha transparente, até que só lhe restou fugir dali, desfranzindo a altivez de sua dignidade definhada. Com suas meninas, uma de cada lado e a passos largos.

9 comentários:

  1. Puxa, Maria Teresa!

    Que coisa linda este texto. Eu com minhas pernas longas já senti o que é ser magrela e diferente na escola, ser a última da fila ou uma das primeiras nos defiles de 7 de setembro de mil novecentos e bolinha. Risos! Também no blog recebo depoimentos de mulheres altas e muuuuito mais altas...

    Parabéns pela sensibilidade!

    Abraços!

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  2. Limara:
    Obrigada por seu comentário sempre gentil!
    Eu também sempre fui a última da fila no tempo do mil novecentos e bolinha... Ainda bem que os Alinhavos valorizam as estaturas espigadas...
    Beijo carinhoso

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  3. Oi, Maria Teresa... em contrapartida ao seu conto... eu com meu metro e meio sempre puxava fila da escola e era obrigada a sentar na primeira carteira. Até na universidade quando ia com a turma do fundão... levava "bronca"... pois como enxergaria? Bem feza Aninha... caiu fora dos limites do doutor! Valha-me a liberdade!! Abraço, Célia.

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  4. Oi, Célia, não há nada melhor do que se sentir confortável. Harmonia por dentro e por fora é imprescindível, não é?
    Beijos

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  5. Pois eu sempre estive entre as primeiras da fila!Que inveja das colegas mais altas!. Achava-as esbeltas, elegantes, cheias de si... Mas com o tempo... e com um saltinho apropriado...não me dei mal: consegui encarar a minha estatura.!E até fui feliz! O segredo está em nos satisfazermos com o que temos. Afinal, as diferenças fazem parte da vida!

    BJ RUTH

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  6. Ru:
    Sem dúvida! Harmonia é o que buscamos cotidianamente, no entanto, às vezes essa busca é bem árdua.
    Beijos

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  7. Belíssimo texto, de grande sensibilidade. É impressionante como o diferente sofre descriminação. Posso entender todo o sentimento e o encolhimento de nossa Aninha. Nasci com lábio leporino e tive que inventar esquemas emocionais para não sucumbir à maldade intrínseca do ser humano. No meu caso, acho que me fortaleceu, mas conheço quem não resistiu à circunstâncias semelhantes.
    Você captou de forma brilhante o drama interior, o desconforto na alma que corrói a alegria de viver de pessoas, que por não serem aceitas, não se aceitam.
    Adorei seu blog e seus textos e convido-a a conhecer o meu.
    Beijokas e uma semana linda pra vc.
    Seguindo...

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  8. Dos problemas existenciais e formas (?!) de os ultrapassar ou... "saltos" maiores que as pernas!
    Beijinhos
    Quicas

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  9. Lua Nova:
    Obrigada pelo comentário generoso. Seja muito bem-vinda entre meus botões. Terei também grande prazer de visitar seu espaço, certamente.
    Beijos


    Caro Quicas:
    É sempre uma alegria encontrá-lo por aqui. Grande alegria.
    Abraços

    MTeresa

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