terça-feira, 2 de agosto de 2011

Demônios


Ele ficou surpreso com a imagem da menina que chupava uvas com voracidade, olhando para a imensidade do campo nevado através da janela, enquanto outras uvas brotavam instantaneamente no cacho dourado logo que as comia. Sem parar.
Foi dormir pensando nela e imaginou-a com seus cabelos cor de fogo, morrendo de amor, envenenada de amor. Gabriel García Márquez caracterizou como anjo demônio aquela menina de cabelos vermelhos que viveu no século XVIII, no convívio de escravos e orixás, e imprimiu nela, sem pudor, o estigma do sentimento mais paradoxal que existe: o amor que consome, faz delirar e mata impiedosamente.
Ele guardou o livro do escritor colombiano, prendendo nas páginas de seu realismo fantástico a volúpia que transbordava para fora daquelas folhas pudicas. As páginas dos livros sempre são castas, brancas, puras. Puras, brancas, castas. No entanto, a vermelhidão dos cabelos da menina personagem impressionou-o, deixando as páginas lisas lisas com textura de luxúria, de hipnose. O amor e outros demônios era o nome daquele romance onde se exorcizavam demônios que invadiam palácios e manicômios, sempre preenchidos por gente solitária e amedrontada por seus fanatismos e fantasmas.
Dias depois, a história impregnada de cães raivosos e de sortilégios o encontrou devorando-a pela segunda vez. A meninazinha ainda chupava uvas sem parar sem parar sem parar. Era o amor que renascia com feições angelicais, pronto para ceifar, manchando de sangue aquelas páginas alvas da obra terna e ardente. As páginas dos livros que contam os dramas das histórias de amor nem sempre são castas, brancas, puras: as palavras também servem para desvirginar seu alvor, enroscando-se nos cabelos escarlates do amor que nunca param de crescer. Feiticeiramente. 

(imagem: http://cinemacomrapadura.com.br)

4 comentários:

  1. Histórias... romances... Por quê nos perdemos em suas emoções, porquê nos envolvemos em suas artimanhas, vivenciando fatos, ilusões? Gabriel Garcia Márquez nos responde com sua literatura viva, cativante e marcada de suspenses...
    Bj RUTH

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  2. Ru:
    Este livro do Garcia Márquez, em especial, é de uma emoção sem limites. Assustador também!
    Beijos

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  3. Ah, minha amiga, como gostaria de saber escrever como você! Intensamente! Uma escrita forte, dominadora, que prende da primeira a última palavra!...

    Beijos

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  4. Dulce:
    Muito obrigada por esses elogios tão generosos! Tenho também prazer muito grande de ler seus textos, de saber de suas impressões a respeito do mundo, das pessoas, da poesia de seus poetas do coração. Como vê, é recíproco!
    Beijos

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