domingo, 22 de maio de 2011

Pais

Cíntia voltou a escrever, nas folhas recicladas do diário, àquele universo onde não havia cobranças e pressões. Bom ficar de camisola e sentir-se assim como página em branco sem mancha alguma, sem linhas. Era domingo e apenas uma voz longínqua de alto-falante era percebida no ambiente que parecia fazer a vida hibernar.  Não era dia de nada, mas no parque deveria estar acontecendo alguma competição, é, devia ser isso.
Sentiu um impulso por dentro e as palavras foram aparecendo aos montes, encavaladas de tanta pressa. Ia escrevendo e comendo as balas de goma coloridas do pote que não deveria estar ali, bem à sua frente, torturando-a. À medida que o pai de boné ia sendo construído, o outro pai, meio careca e de cavanhaque bem aparado, surgiu na fresta da porta com cara descansada. Era gordo como um carrapato, mas estava sempre de bom humor, sempre entupindo-a de  carinhos calculados.
Imediatamente Cíntia escondeu o pai de papel. Ele também era careca e tinha cavanhaque, mas parecia mais  leal do que aquele que lhe perguntava se ela queria ovos mexidos. Não, não iria tomar café com a nova namorada dele, olhar o rímel escorrido que dava um pouco de nojo, a Deolinda se queixaria do borrão preto no lençol no dia seguinte, isso já tinha virado hábito. Ficou aliviada quando a porta se fechou e o outro pai apareceu.
Comeu mais algumas balas dando preferência às vermelhas, ficou com as mãos meio meladas, mas mesmo assim colocou os fones no ouvido para não perceber os ecos das risadinhas com cheiro de pão tostado vindas da cozinha. O pai fictício tinha colocado um boné com a aba virada para trás e lhe deu uma piscadinha: claro que adoraria sair com ele para um passeio de bicicleta. De-lí-cia. Na volta, poderiam tomar um suco de mexerica bem gelado com pão de queijo na casa da avó. Ela já deveria estar esperando por eles.

(imagem: http://www.google.com.br)

9 comentários:

  1. "Como tratares teus pais, assim serás tratado por teus filhos"

    Abraço.

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  2. Que felicidade poder escolher o próprio pai!Certamente seu perfil já vivia em seu subconsciente, foi só encontrá-lo!

    Bj Ruth

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  3. Manuel:
    Será que isso já está previsto ou depende das circunstâncias?
    Grande abraço


    Ru:
    Pelo menos na ficção isso dá certo, não é?
    Beijos

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  4. Será que, na verdade, todos nós temos dois pais? Um que nos deu a vida, ensinou-nos os caminhos, tolheu alguns de nossos sonhos, apoiou outros, às vezes distante, as vezes presente até demais, perfeitamente humano em suas ações, em seu erros nem sempre fáceis de serem entendidos, principalmente quando se é jovem... E um outro que, depois que se foi, formou-se em nossa alma, em nossas lembranças como alguém intocável... Já me peguei, muitas e muitas vezes, pensando sobre isso, sobre a forma como o tempo e a maturidade transformam nosso modo de ver as pessoas mais próximas a nós.
    Beijos

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  5. Olá Maria Teresa,
    Pai há só um...mas sempre se pode inventar um ou mais...sempre andamos a inventar relativamente a uma pessoa duplicados conforme as circunstâncias, pode estar mesmo no olhar para dentro, o que sugere um diário...e quando escrito mastigando balas de açucar...
    Os seus escritos fazem salivar...devido ás alusões comestíveis!kkkkkkkkkk
    Beijos,
    Manuela

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  6. Bacana esta oscilação entre o universo onírico e a dura realidade, tendo as balas de goma como mediadora entre um pai e outro. De parabéns, Maria Teresa. Um grande abraço.

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  7. Dulce:
    Bem complexo esse nosso prisma psicológico... Quando as pessoas passam a existir somente como ideia, assumem perfil absolutamente abstrato que as faz parecer apenas o que pensamos que elas são. Vemos apenas uma aresta do prisma, aquela que está voltada para nossas lembranças, não é?
    Beijos


    Manuela:
    Esses inventos nos fazem mais libertos, você não acha? Ilusão também faz bem, ainda mais com as balinhas que derretem na boca...
    Beijos


    Marcelo:
    Obrigada pela visita; você sempre aparece para iluminar.
    Abraços

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  8. A gente se identifica com a Cíntia, mesmo que nunca tenha vivido o dilema que ela vive. Um texto muito bom, Maria Tereesa. Pena que eu ande com tão pouco tempo pra visitar os amigos, ler suas boas histórias. Sinto falta daqui.

    Beijo grande.

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  9. Dade:
    É sempre uma alegria sua visita. Sei bem como é essa correria, venha quando puder.
    Beijo carinhoso

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