sexta-feira, 4 de março de 2011

Submarino


Quase que não dá mais para ir pra escola, justo agora que já sei ler tenho uma mochila novinha bem da cor do Verdão e muitas canetinhas. Tá certo que acabei tendo que desamassar as orelhas daquele caderno que ficou abandonado pelo meu irmão do meio que não quis mais saber de estudar. Besteira dele, meu irmão mais velho entende das coisas: nunca perdeu aula por nada deste mundo e sempre se deu bem não é à toa que deixou o trabalho de entregador de galão de água e virou office-boy daqueles que vão ao banco e tudo. Nunca ligou para os ônibus lotados e muitas vezes foi que nem bandeira voando agarrado na porta meio aberta meio fechada mas cada um se vira como pode minha mãe sempre diz isso. Detesto chegar atrasado, mas a professora é boazinha e deixa eu entrar fingindo que não vê a mochila verde passando a jato e sentando na carteira de canhoto. Ainda bem que sou o único canhoto ali. No começo, achei que escrever com a mão diferente da que todo mundo escrevia era um defeito grave e tentei consertar, mas não teve jeito: também não conseguia dar bicão com a direita e fui aceito no time mirim com meu chutão de esquerda. Fico achando que a professora gosta mesmo de mim, porque só me dá nota boa.
Minha mãe morre de medo de me buscar na escola por causa da chuvarada. Ela diz que o ônibus vai sair boiando e que não vou precisar mais do que já sei pra logo logo ajudar com as despesas da casa, mas eu não quero faltar e fico insistindo que já posso ir sozinho, mas isso ela não deixa e me leva reclamando e reclamando. Eu não acho que ela tá certa, mas ontem achei que tava, foi demais: as filas, no ponto, pareciam aquelas cobronas enormes do Butantã e o guarda-chuva de vareta quebrada da minha mãe não dava conta da aguaceira que caía sem dó. Era tanta água, que o tênis ficou pesado, fazendo os dedos enrugados doerem e a câimbra judiar judiar. Fui esmagado e puxado para dentro, morrendo de sono, só imaginando como a mochila novíssima devia estar um trapo, minha mãe adora dizer que as coisas viram trapo. Mais pra frente um pouco consegui sentar perto de uma moça bonita de sapato brilhante. Foi aí que me deu um medão danado: ela também tinha uma mochila e dava pra ver um pedacinho de um snorkel saindo pra fora. Devia ter máscara e pé de pato lá dentro também. Será que o ônibus ia boiar mesmo pra ela levar tudo aquilo na mochila? Fiquei com vontade de perguntar e meu ouvido até doeu de prestar atenção no que ela falava no celular o tempo inteiro: ela morria de rir e dizia uns nomes que eu nunca tinha ouvido: Los Roques, Venezuela, Caracas. Quando eu ia perguntar, minha mãe me deu um beliscão fininho, daqueles que ficam roxos roxos. E eu acabei pegando no sono de pura canseira. O mais legal foi que a moça me emprestou o snokel dela para eu sair pela janela. Tá certo que não deu pra levar a mochila do Verdão, mas também já tinha mesmo virado um trapo!!


8 comentários:

  1. ô texto arretado.
    eu, com meu chinelo vencido, amarrado com um clip, sentada na parada do ônibus pro manuel julião e lendo sua crônica impressa pra matar o tempo que, quanto mais tarda, mais boa fica a leitura.
    Grata, continue nos brindando com estes contratempos para suavizar os minutos de espera.
    Tudo de bom
    Mil beijos Mil cores

    ResponderExcluir
  2. Você se (in)vestiu muito bem da pele desse "outro"... E com uma suavidade... Aliás, percebo que seus textos estão mais assim... Algo mudou, e pra melhor.
    Beijos.

    ResponderExcluir
  3. o beliscão doeu viu, senti daqui…rs

    ResponderExcluir
  4. Crítica social, ironia e um certo tom poético ao retratar nossas agruras anônimas. Gostei muito, muito desse texto. De parabéns, Maria Teresa.

    ResponderExcluir
  5. Chuva, inumdação, água e mais água... V. retratou muito bem o sofrido dia-a-dia do povo que se arrisca para o trabalho, chova ou faça sol! Nesse contexto me pergunto:quão afortunados somos, nós que só ficamos na contemplação dos fatos! Contudo deve haver o que fazer para repararmos essas agruras diárias. É só descobrir como e quando...
    Bj Ruth

    ResponderExcluir
  6. Há pessoas assim, como esse garotinho, que aprendem desde cedo a lutar pelo que querem, que aprendem a vencer as dificuldades da vida e sair em busca de seu lugar, tentando melhorar seus caminhos... E, como diziam os meus antigos, para pessoas assim, "não existe tempo ruím".Eles vão nadando contra a maré, enfrentando o que vier, vivendo o que a vida lhes deu... Espero (muito) que esse garotinho chegue lá...
    Amei seu texto, como sempre, Maria Teresa. essa facilidade que você tem em escrever e descrever me encanta. Lindo!
    Beijos e Feliz Dia da Mulher.

    ResponderExcluir
  7. Iracema:
    Delícia saber tudo isso! Fiquei muito feliz com todos os detalhes do momento que você leu o texto. Comentário arretado!
    Beijos


    Manuel:
    Obrigada pela gentileza da visita.
    Abraços


    Nivaldete:
    Iche, partindo de você, o mergulhador fica até com vontade de ir mais fundo!
    Beijo carinhoso


    Long Haired Lady:
    Espero que tenha valido apenas como um carinho! Seja bem-vinda!


    Marcelo:
    Agradeço muito; é sempre um grande prazer recebê-lo aqui.
    Grande abraço


    Ru:
    Em se tratando de aguaceiras, isso tem sido democrático, não é? Carnaval literalmente sob as águas...
    Beijos


    Dulce:
    Ele é um garotinho sabido e cheio de sonhos bons; assim são os valentes com estrela no coração! Obrigada por todo seu carinho.
    Beijos

    ResponderExcluir