segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Bamboleio


Acordou sobressaltada porque sonhou com ratos. Muitos ratos pequenos e outros grandões e pançudos, mas todos ágeis e com cara de deboche, como se soubessem que neste mundo de segunda mão eles dominariam deixando-nos todos com palavras surdas-mudas. O pai estava sem ânimo para as perguntas dela feitas com aquela vozinha rouca e trêmula. Botero pintava crianças? Ela seria um modelo perfeito com aquelas bochechas balão mais que coradas e boquinha minúscula como os pés também minúsculos. Re-don-da e cheia de perguntas feitas com olhares apertados de amor invertido. Há tantos ratos engraçados o pai lhe dizia sem paciência mas um mundaréu de lágrimas escorria pela cara gorducha como uma melancia estufada e alagava as palmas das mãos já suadas e febris de coisa oca. Ela parecia ter feito parte da produção de crianças próprias para consumo e ordenava afetos e sonhava cada dia um pesadelo mais dolorido. Roía a imagem da mãe ausente e devorava hambúrgueres com batata frita. Nunca sorria, nunca não, sorria quando o pai chegava toda noite com um saco de balas ou uma caixa de bombons. Preferia os que tinham papel colorido e que mostravam crianças felizes brincando de bambolê.

4 comentários:

  1. Olá Maria Teresa,
    Este texto, muito inspirado em Botero, refere-se a uma criança estranha! Eu conheço algumas gordinhas, bochechudas, que gostam de hamburguers e de balas (aqui bombom), mas a sonhar com ratos não sei e com o amor invertido...não chego lá!...Fico a imaginar e por isso é um prazer vir cá.
    Beijinhos,
    Manú

    ResponderExcluir
  2. No bamboleio da vida, todos nós, mesmo adultos, temos os nossos pesadelos e aflições e gostamos de despertar com bombons de ternura e carícias de esperança... Bj RUTH

    ResponderExcluir
  3. Que retrato feio e triste . Que olhar paterno triste e feio. Que pena da menina que tem um pai que a vê assim! Com certeza não reproduzirá outra coisa que não isso mesmo...
    Li recentemente que o recalque sempre vem atona, segundo o texto, citando Freud, o estranho familiar, no fundo, é o retrato de nós mesmos.
    Beijos mais prósperos, Maria.
    Amanda.

    ResponderExcluir
  4. Manu:
    Criança triste, que se mascara de guloseimas, isso não deveria acontecer, não é?
    Sua visita por aqui é sempre muito prazerosa.
    Beijos


    Ru:
    Ainda bem que há bombons de ternura todo o tempo!
    Beijos


    Amanda:
    Os retratos nem sempre são belos, infelizmente. É a vida!
    Beijos

    ResponderExcluir