segunda-feira, 10 de maio de 2010

Fantoches


Era um rei aficionado por roupas. Certa vez, comparecem ao reino dois tecelões dizendo-se criadores de tecidos nunca vistos, de tão belos; de cores e estampas originais e também invisíveis a quem não trabalhasse direito ou não tivesse inteligência primorosa. Os tecelões são contratados e executam o ofício durante muito tempo, mandando buscar no palácio seda e ouro, que vão sendo cuidadosamente guardados em grandes baús. Mas ficam trabalhando até tarde, com fios inexistentes, nos teares vazios. O rei manda emissários para conferirem o trabalho (claro que ele prefere não ir) e, como ninguém quer ser taxado de ignorante ou de incompetente, retornam contando maravilhas das futuras vestes do soberano. No final desta fábula de Andersen, o rei desfila garboso e nu, diante de uma multidão de caras cheias de pasmo ou de zombaria camuflada. Apenas uma criança constata que sua majestade está sem nada, enquanto os valetes reais caminham carregando uma cauda que não há. No entanto, quando o rei ouve o que a criança diz e que vai passando de boca a boca, pensa consigo que deverá continuar impassível, até o final do cortejo.

Da ficção segui para a realidade e novamente para a ficção. No jornal de hoje, há uma matéria sobre a dependência do computador, que afasta crianças e adolescentes do mundo real. Não há necessidade de amigos, de estudo, de leitura (imagine se há), de sol e até de sal: esquece-se de comer, de dormir. Um vício que cega e que domina. Horas e horas são gastas com jogos e com passeios virtuais, a ponto de alguns pais que passam o dia todo trabalhando fora, sentirem necessidade de levar os filhos adolescentes à Santa Casa de Misericórdia para pedir ajuda. Desesperados.

A busca desenfreada pelo prazer transporta-nos, fragilizados, a um mundo grandemente sedutor, onde nem sempre é necessário refletir nem viver com sobressaltos. “As situações podem ser tão graves quanto as dos dependentes de drogas e álcool. [...] Conforme se vai jogando, ocorre liberação de dopanina no sangue, o que faz com que se queira mais horas ao computador. Além da psicoterapia, o tratamento pode incluir medicação.” (ESP, A14 – 10-05-2010). A gravidade do problema amplia-se para o espaço dos adultos. Muitas vezes, falta-nos aquele bom senso sábio e raro que, na fábula, foi personificado pela criança sem a malícia dos que aplaudem as evidências dos absurdos. Vivemos distantes da realidade, como os valetes reais, impressionados pelos contornos dos desenhos bordados a ouro nas vestes do monarca.

4 comentários:

  1. Simbolicamente "o homem nú" interpreta bem o ser humano desprovido de vaidade, de artifícios. Por isso só a criança o vê, como ele é, sem artimanhas, sem correções...
    Possamos ser assim puros e plenos em nossa personalidade e nquilo que representamos: nosso EU pleno e absoluto! Parabéns pela aplicação da fábula! BJ RU

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  2. Essa fábula é de grande sabedoria. A criança é o ser sem 'escamas nos olhos' (expressão bíblica). Além da poderosa Net, há as representações sociais, também hipnotizantes, efeito agravado pela propaganda. Meditar é preciso...
    Um beijo, Maria Teresa.

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  3. Quantos "homens nús" andam por aí, Maria Teresa!A Internet tem tanto de bom como de prejudicial quando a sua utilização se torna viciante. Aí, o homem tem que se vestir com a sua roupagem de educador para desempenhar da melhor forma possível a sua função.
    Beijinhos
    Lourdes

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  4. Ru:
    Como etiquetamos e somos etiquetados! Lembrei-me daquele poema do Drummond - "Eu, etiqueta", que começa assim: "Em minha calça está grudado um nome / Que não é meu de batismo ou de cartório /
    Um nome... estranho."
    Bjos

    Nivaldete:
    Tema pra meditação sem dúvida; no entanto, como é difícil nos enxergar "através" de todas as representações que engolimos goela abaixo...
    Bjos

    Lourdes:
    Concordo plenamente com você: a Internet oferece inúmeros benefícios, no entanto, refletir sobre a alienação que a tecnologia cada vez mais avançada também proporciona tem que estar na pauta de todos os que educam.
    Bjos

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