segunda-feira, 15 de março de 2010

Objetos


Século XIV:
Em Portugal, na época do reinado de D. Pedro I, havia sempre danças e confraternizações com o povo, para que o rei pudesse amainar as saudades de Inês de Castro, sua amada, cruelmente assassinada por motivos políticos. Certa vez, conta-nos Fernão Lopes, o “Heródoto português”, que depois de armar cavaleiro um dos nobres do reino, o rei mandou lavrar seiscentas arrobas de cera, com que foram feitos cinco mil círios e tochas. Para segurá-los, em duas filas imensas, havia cinco mil homens estáticos como se fossem candelabros e, no meio deles, passava toda a nobreza “dançando e tomando sabor”, no caminho iluminado do mosteiro até o palácio. No dia seguinte, aos cinco mil homens foi servido muito pão com carne e muito vinho e todos ficaram muito alegres e satisfeitos.

Século XXI:

Em vários cruzamentos de ruas de São Paulo, Brasil, depois da lei que proibiu cartazes chamativos de propaganda, é comum contratarem-se adolescentes (às vezes bem jovens) como aquela, roliça, que me chamou atenção no último final de semana: a menina tinha cabelos louros e pele bem vermelha. Não que fosse vermelha de fato, mas ela estava ali na esquina há horas e o sol do meio dia fazia até o concreto da rua derreter. Era domingo e quase não havia ninguém a pé, pois era impossível aguentar a temperatura de mais de trinta graus. No entanto, a menina gordinha suava dentro daquela roupa amarelo vivo e não arredava pé e balançava pra lá e pra cá a placa que apontava o sensacional lançamento do novo prédio que teria como quintal e jardim nada mais que o Parque do Ibirapuera inteiro. Deveria estar pensando no cheiro do frango assado da padaria próxima ou mesmo num refrigerante gelado para aplacar o calor descomunal que ela sentia dentro da roupa justa e bem amarela cor de sol, mas para afugentar essas ideias paradisíacas, ela balançava a placa pra lá e pra cá, convicta de que todos os que passassem de carro e a vissem balançando a placa de lá pra cá iriam direto até o futuro prédio sensacional que abrigaria o Parque Ibirapuera inteiro dentro de seu projeto paisagístico. A menina tinha cabelos louros que combinavam com sua roupa bem amarela e com os raios ardentes do sol naquele domingo ao meio dia e, pensando no que receberia no final do expediente, parecia alegre e satisfeita.

12 comentários:

  1. Meu Deus!
    Será que o que lhe iam pagar valia o sacrifício?
    Mas por certo sim. Não por receber muito mas, talvez, porque mesmo sendo pouco era melhor que nada.
    Triste vida a de alguns...
    Beijinhos
    Lourdes

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  2. Coitada da menina, senti o calor só de ler.
    Essas promoções nas ruas judiam demais das pessoas que nelas trabalham. Ganham diária, será que compensa o sacrifício?

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  3. Lourdes:
    Triste mesmo... Triste por ser nada mais que uma placa, pois a pessoa deixou de existir por trás dela...
    Bjos


    Vera:
    O pior de tudo é a necessidade de ficar movimentando a propaganda, como se fosse uma máquina perene...
    Beijos

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  4. Bom dia, Maria Teresa! Excelente a analogia entre as duas situações, em épocas tão distintas... Mas, infelizmente, acredito que a quantia recebida pela menina loira foi proporcionalmente bem inferior ao "prêmio" dado aos homens do século XIV... Beijos!

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  5. A exploração neste país não deixa brechas. Pobre menina! Pobres meninos que também ficam ao pé do semáforo, fazendo malabares para conquistar um trocado para a comida!

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  6. Oi, Cassia:
    É verdade; os tempos avançam, o homem pensa que progride e se torna cada vez menos humano.
    Bjos


    Tânia:
    O pão e o circo... Sempre essa filosofia...
    Beijos

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  7. Mas nós bem sabemos que o que esse menina deve ter recebido por aquele dia escaldante, passado balançando uma placa, mal deve ter dado para um hamburguer e um refrigerante na lanchonete da esquina, não é?
    Deve ter sido infinitamente menos do que receberam os cinco mil tocheiros de D. Pedro I de Portugal, já que (segundo o relato) ficaram muito felizes com o pagamento e nossa garota paulista deve ter voltado para casa pensando se realmente "tudo vale a pena" ou se tem sua alma tão pequena que nem percebe o valor...
    Beijos

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  8. Quantas máquinas vivas pelas ruas das grandes cidades, quantas meninas, roliças ou não, quantas peles de cores diversas são castigadas pelo sol deste verão infernal. O que não se faz para receber um trocado no fim do dia!

    Beijo, Maria Teresa.

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  9. ...pela inspiração sempre pronta e feliz!

    ...pela mensagem deixada em cada reflexão!

    ...pela emoção de cada quadro e de cada comparação!

    ...pela vida que brota em palavras, poesia e hino!

    ...pela força e graça do seu exixtir...!


    Bj RU

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  10. Dulce:
    Você citou o mestre e eu me lembrei de um outro poema dele, daquele que fala da ceifeira que trabalha e canta e se julga feliz. O poeta que a observa comenta: "Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!"
    Bjos

    Dade:
    Eu não me conformo com essa agressão, com a humanidade pisada com gosto de objeto descartável...
    Bjos pra você.

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  11. Retrato da estupidez que é esse capitalismo superganancioso....
    Abraços,amiga.

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  12. Ru:
    O que seria de mim sem todo esse carinho?
    Sou mesmo uma pessoa abençoada.
    Beijos carinhosos,
    MTeresa


    Nivaldete:
    Retrato fiel, com moldura bonita.
    Beijos

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