quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Amarelo

Então, ele me falou que eu estava com mania de falar então. Dizia sem perceber, sem me dar conta de que o tempo todo eu conectava uma ideia à outra pretendendo formar inteiros, visando à completude. Cacoete? Achei que não era bem assim, pois o então é palavra comum, como o mas ou o porquê; entretanto, procurei ficar de sobreaviso nos momentos em que conversava, em que atendia ao telefone, nos instantes em que ficava de mim para mim e me surpreendi: uma fileira de várias palavras então foram perfilando-se à minha frente, aguardando ansiosamente o momento de virar som ou rabisco; tensos, eles me cutucavam, me sorriam esbanjando delicadezas, enquanto eu ficava atordoada com tanto assédio, com vontade de confiná-los num quarto escuro deste nosso mundo de fragmentações. Se leio o jornal pela metade, se mal consigo dar atenção aos assuntos simples do cotidiano, se descarto a sobremesa e adio meu projeto de ler Proust sem interrupções, então me concentro e percebo que o então é aliado. Num contexto em que os valores se fracionam e se decompõem, em que o que vale é o que paira na superfície, em que os atos se justapõem sem que haja necessidade de um elo que lhes dê unidade, o então é benquisto. Então procuro perceber a cor do então e descubro que só pode ser amarelo. Amarelo que aquece e que faz a vida caminhar, que desencadeia a continuidade e a compaixão, amarelo que estimula a vontade de aprender e de descobrir. Amarelo corado então.

(quadro: www.joaobarcelos.com.br/manha_amarelo.jpg)

10 comentários:

  1. As palavras me levaram até seu blogue rs, quando vi o título me veio várias coisas à cabeça (entre elas Proust, n sei pq rs), e encontrei no seu texto, gostei mesmo.

    Beijos!!!

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  2. Oi maria, faz tempo que vc não escreve um texto que me instigue a comentar.
    Então; contra argumentos não há fato que pode, não é mesmo?
    Porém (e toda essa classe de advérbios que eu gosto bastante), se (condicional que eu tb gosto bastante) o ENTÃO deixar de ser palavra e virar fato, contra fato não haverá argumento.

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  3. Chico:
    Incrível como acontecem as transmissões de pensamento, não é? Obrigada pela visita.


    Amanda:
    As palavras são mesmo atrevidas; não veem a hora de virar fatos! Bjo

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  4. Amiga Teresa,

    Sempre gostei dos seus textos. São peculiares. têm carisma, algo muito pessoal na sua forma de escrita.
    Este está brilhante:
    Parabéns

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  5. Cara Fernanda:
    Agradeço muito suas palavras vestidas de ternura e de gentileza.
    Um beijo carinhoso,
    MTeresa

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  6. Oi Profa.

    Gostei muito do seu texto. Descreve muito bem esse mundo de acontecimentos relâmpagos. Devo confessar que essa rapidez moderna muitas vezes me atinge, mas busco integrar o amarelo então na minha vida, desacelerar e descobrir o meu próprio tempo para criar meus elos. Seu texto me da forças.

    Um beijo
    Daniel

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  7. MARIA TERESA: não haja dúvidas! o "então" é uma palavra brilhante, que nos serve para todas as situações! Ler PROUST, então... Não consegui passar do 3º volume de "À procura do tempo perdido"... Então... juro a mim própria que será da próxima vez que não tiver nada que ler! E ENTÃO... lá vem qualquer outra coisa!
    ADOREI o teu texto!
    BEIJINHOS de
    LUSIBERO(MªELISA RIBEIRO)

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  8. Ouro
    Sol
    Fogo
    Gema de ovo
    Polpa de manga
    Girassol e outras maravilhas
    Aquecem sim e o então é amarelo.
    De verdade, vou usar o "então" muito mais vezes.
    Seu texto diz de alguém ligado na vida.
    Com qualidade.
    Obrigada e visito o lesadosemgeral.blogspot.com
    Comentários vindos de você o enriquecerão.

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  9. ENTÃO é muito entrão,mas sempre necessário. A cor ficou bem... Gosto dela. Um beijo.

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  10. Daniel:
    Que alegria ver você por aqui. Imagino o que essa máquina anda fotografando mundo afora...
    Descobrir o próprio tempo para criar elos, acredito mesmo que essa seja a busca de todos nós; busca que renasce todo dia. Adorei sua visita. Bjos


    Maria:
    Bom saber que você, também tão vinculada ao mundo da Literatura, depare com essa vontade louca de chegar ao fim de um grande clássico e desvie-se desse intento, apesar de não querer de forma alguma que isso aconteça. É um consolo!
    Bjos


    b:
    Obrigada pela visita. Certamente que irei procurar seu espaço. Apareça sempre!
    Abraços


    Nivaldete:
    Entrão mesmo... E não é que eu não estava percebendo que ele chegava camuflado?
    Bjo carinhoso

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