quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Princesa

Vermelha e longilínea. Era uma princesa oriental e estava bem à entrada na mesa de vidro retangular ao lado do vaso de hortênsias. Parecia convicta de sua postura esguia e me olhava lacônica com olhos semicerrados, subtraindo-me o ar naquela que fora a noite mais escura do ano. Media-me dos seus sessenta centímetros, obrigando que eu me engajasse naquele mundo despojado de paisagem, pois sem luz não há nem sombra nem contornos nem texturas, mas há solidão que estimula a refletir sobre ações urgentes e sobre ternuras esquecidas. Também não a enxergava, mas sentia seus olhos severos cravados nos meus pensamentos fragilizados, como se a negritude fosse capaz de esconder-me de minhas obrigações; sem luz o tempo não pensa em si mesmo, era uma forma de driblar o tempo. Poderia também alongar essa minha quase ausência e ir preparar uma salada de aspargos verdes, pois apesar do minguado reflexo da lua na noite em que um raio na usina provocara blecaute, era só abrir a tampa do vidro; além disso, imaginava que daria para respirar o ar que sairia do pote hermeticamente fechado e com isso minha alma não se sentiria tão aprisionada por tanta inquietude, por tanta ansiedade. Novamente olhei para a chinesa, e senti que a vermelhidão de sua austeridade me invadira por dentro, fazendo-me esquecer os aspargos na redondez do vidro que continuou na prateleira, enquanto eu me debatia comigo. Teria que ser uma carta sem remetente, impressa com letras compatíveis com sua miopia, agigantada por suas inconsequências. Uma carta curta, tão lacônica como o olhar daquela princesa como ela também já havia sido, quando o mundo era iluminado e as hortênsias rosa enfeitavam a mesa de vidro retangular bem ali na entrada. Mas o mundo estava no escuro. E a carta concisa ficou para o dia seguinte.

15 comentários:

  1. Olá Maria Teresa,

    Vim agradecer seu comvite e apreciar suas introspecções neste lindo blogue. Muito obrigado pelo convite, pois adorei ler seus pensamentos...

    Creio que escrever assim, é o exemplo de que quando nos entregamos às palavras, elas simplesmente nos levam, e no nosso mais secreto interior jorram as águas coloridas das emoções.

    Que é que você estava fazendo em Santana, na ilha da Madeira?

    Seu estilo de escrita, embora no tom do português do Brasil, tem influências de Portugal, ou será mais ao contrário? Até diria que sim...

    Beijinhos...

    Luís

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  2. Amiga Teresa,

    Sei do apgão ontem no Brasil e pensei em todos os meus amigos brasileiros. Só quando nos faltam coisas tão simples como luz, água, é damos lhes damos o verdadeiro valor.

    O seu texto é lindo, e a sua princesa é fabulosa, estava a ver quando ela seria quebrada nessa noite de breu escura, com algum gesto mais brusco ou na desorientação, ainda bem que só ficou por ler a carta.

    Beijinhos
    Fernanda Ferreira (NÁ)

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  3. Luís:
    Seja sempre muito bem-vindo a este espaço.
    Fiquei muito contente de que tenha percebido,nesses meus simples escritos, traços de autores portugueses por mim bastante apreciados, desde os clássicos até os modernos, como Fernando Pessoa (sempre que vou a Lisboa, tiro uma foto nova com ele em frente à cafeteria "A Brasileira"...), Saramago e Agustina.

    A foto ao lado, em Santana, tirei-a ainda este ano, quando conheci a Madeira: que lugar cheio de doçura e de magia!


    Fernanda:
    Você não imagina as consequências do apagão por aqui: todos saíram de carro, hoje, com medo de um novo blecaute e a cidade de São Paulo ficou parada, literalmente. Fora os estragos de aparelhos eletrônicos e os problemas sérios em aeroportos e hospitais...

    Que bom que você gostou da princesa esbelta! Ela é mesmo muito misteriosa.


    Um grande abraço a vocês dois, novos amigos portugueses,
    Maria Teresa

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  4. Pois pois... Fez-se o apagão, e o apagão gerou a luz do seu texto...
    Grande abraço.

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  5. Maitê,

    temos algo em comum, que acabo de descobrir: amamos as hortênsias... rosas, lilases, de todas as cores.
    Essa sua princesa mesmo um mistério! Bem que ela poderia iluminar a sua pretensa 'carta' com aquele olhar austero...rs
    Bonito seu texto, amiga, eu a admiro muito!!
    Só não a visito mais por causa desse bendito problema de web...
    Vc me visitou e eu corri aqui, e dessa vez acho q vai dar certo.
    Pronto: vou postar rsrs Torce aí...
    Um beijão!!!!!!

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  6. AFINAL, como ainda estou sem sono (é meia-noite,neste momento, em PORTUGAL), entrei em teus "botões" para te dizer que adorei a vivacidade dos NEOLOGISMOS, que me recordam EÇA de QUEIRÓS...E que tal, o apagão???
    BEIJINHO DE TUA COLEGA PORTUGUESA LUSIBERO(http://lusibero,blogspot.com

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  7. Olá Maria Teresa
    Muito bonita a sua crónica; e que bem que escreve!...
    É sempre um gosto passar por aqui.
    beijinhos

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  8. Nivaldete: obrigada pela visita iluminada.

    Graça: deu certo!! Oba! Uma hortênsia pra você.

    Beijos a vocês.

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  9. Olá, Maria:
    Seja bem-vinda!
    Hoje, felizmente, estamos às claras para recepcionar os amigos aqui. Ontem foi um pesadelo e até agora as causas do apagão estão desencontradas.

    Lourdes:
    Muito obrigada pela visita carinhosa.

    Beijos verde-amarelos,
    Maria Teresa

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  10. Um texto que vai caminhando pela escuridão da noite e lucidez da alma em confronto com o olhar de uma figura supostamente inanimada... A fuga para um vidro de aspargos que, afinal, não saiu da prateleira e a lua, cumplice de todos os momentos, meio escondida num cantinho do relato... Um delicioso texto que nos deixa curiosos por saber mais sobre uma carta que não foi escrita...

    Um apagão nem sempre traz desatinos, desconforto, temores... As vezes, dependendo da sensibilidade da alma de cada um, traz momentos de poesia em forma de prosa... Como este que aqui deixou.
    beijos

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  11. Que delícia de retorno, Dulce! Agradeço muito sua análise tão generosa e tão cheia de ternura.
    Um beijo grande,
    Maria Teresa

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  12. Esse apagão causou muitos transtornos. Mas também suscitou meditações, reflexões bonitas e algum suspense...
    Um beijo, Maria Teresa.

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  13. Dade: É isso: às vezes é necessário dar uma trégua no "de fora" para dar espaço às reflexões.
    Beijos.

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  14. Olá. Cá estou eu mais uma vez a vizitar o seu cantinho e agradecer pelo seu delicado comentário. Muito obrigada.
    Agora vou dar uma espiada no seu post.
    FOI DESSE JEITO QUE EU OUVI DIZER... deseja uma boa semana.
    Saudações Florestais !
    http://www.silnunesprof.blogspot.com

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  15. Oi, Silvana:
    agradeço muito sua visita sempre carinhosa.
    Beijos.

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