domingo, 29 de novembro de 2009

Palavras

Não é mesmo falta de assunto nem tendepá com as palavras às vezes tão cheias de altruísmo e de amabilidades. Rixa com elas, longe de mim! É que hoje à noite tive um pesadelo, desses dandões que continuam olhando pra gente o dia todo, como se estivéssemos tenutamente balançando, suspensos por uma retouça, cujo assento duro e estreito nos faz segurar firme nas duas cordas de milhares de fios com textura de sisal.

Talvez seja excesso de leitura, talvez elas não queiram mostrar-se assim, tão sem privacidade, tão sem liberdade para ficar no seu canto, degustando uma bojarda - ai que delícia provar a doçura dessa pera, cujo nome já faz sentir o excesso sumarento de frescor! Afinal, quanto mais se invadem os mistérios das palavras que se pretendem marotas e atrevidas, mais se enriquece, mas com a sensação de que se infusa, de que se contraem dívidas incalculáveis para com elas; nem os antigos patacões dourados, como aquele que meu pai orgulhosamente levava pendurado no bolso, servem para retrotrair essa sensação de débito. Curioso dar efeito retroativo ao enganar; talvez isso exista só no mundo delas!

Continuo aqui tentando dispersá-las, com cuidado para que um impulso mais agressivo do meu balanço não fira uma ou outra que se encontre com atitude de apatia à frente, provocantemente me encarando com desejo de que nunca mais possa ser por mim utilizada. Indo e vindo, sinto uma espécie de ausência semelhante àquela paralisia de escrita de que Kafka tratou com seu costumeiro ar de coisa soturna. Minhas mãos agarram as cordas que me sustentam com tanta força, que se formam grumos de uma brancura machucadora nunca antes experimentada; o balanço vai e o balanço vem, fazendo-me lembrar aquela mãe que, certa vez, vi empurrando sua filha séria, menininha seriíssima sem sorrisos e com pernas em cruz, sob a laje cinzenta e úmida, onde o sol se negava a aparecer. Ornatos em forma de focinho de animais ferozes surgem aqui e ali; são muflas semelhantes a nutrizes de seios fartos, amamentando a linguagem a que quase me agarro e que me olha com desdém, ratificando aquela ideia de que há dias de ferida iletrada, dias em que as palavras estão machucadas de escárnio e que de maneira alguma comparecem para escancarar o que pensamos, o que desejamos. Ajeito-me da melhor forma que posso na estreitura do banco de madeira de minha retouça, sentindo pelo menos o cheiro doce das bojardas ao longe... E o balanço vai e o balanço vem...


(foto: 1.bp.blogspot.com/.../s400/balanco.jpg)

16 comentários:

  1. Vim te ver balançar...
    Obrigada pela doçura da bojarda e pelas palavras que descubro por aqui.

    Beijo pra você.

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  2. Oi, Dade:
    Minha inspiração veio direto do blog O BEM, O MAL E A COLUNA DO MEIO, você viu, né?
    Beijo grande.

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  3. Maria Tereza,

    que legal esse post! E como aprendi com ele!!!
    Bjssssssss
    Linda semana...

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  4. Graça:
    Obrigada pela visita carinhosa.
    Ótima semana pra você também.
    Bjos

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  5. oi, maria tereza!
    adorei o texto.
    senti falta do meu aurélio.
    estamos desquitados provisoriamente.
    mas no andar da carroça o sentido se faz.
    ou a gente imagina.
    muito bom.
    beijão.

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  6. Oi, Katine:
    Quanto tenho sentido falta do Aurélio também! Nesse post, quis mesmo "descobrir" algumas palavras nunca antes visitadas por mim, aquelas que ficaram com cara monstrenga olhando-me com olhos arregalados...
    Beijos pra você

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  7. ADOREI esse balanço! VIVER É ISSO, BALANÇAR; DE CÁ PARA LÁ, DE LÁ PARA CÁ...
    Aí ao lado acho belíssimas as PERSONIFICAçÕES das PALAVRAS...
    A SINESTESIA, para mim, está na linda paisagem bucólica dum caminhito no bosque que convida a caminhar, a cheirar o tom outonal das árvores, a molhar ,em perfeito telurismo, os pés nessa lama sadia...
    LINDO!
    BEIJOS DE LUSIBERO
    PS: a poetisa portuguesa SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN,tem uma poesia maravilhosa sobre os retratos de família ,na casa da infância , onde permanece a nossa vida, a vida que demos à casa, enquanto lá estivemos a viver...

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  8. Olá, Maria:
    Sou também uma amante da sinestesia; utilizo-a sempre, já virou até vício... Na tela, adoro o contraste impressionista para retratar esse telurismo que você salientou tão sinestesicamente.
    Obrigada pela dica do poema; vou procurá-lo.
    Beijos carinhosos pra você.

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  9. Amiga Teresa,

    Gostei muito...mas senti uma enorme melancolia, quase dor. Será que estou enganada???
    Oxalá sim!!!

    Beijos

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  10. Maria Teresa!
    Lindo texto. Tu sempre me encantas...e as palavras também
    bjos
    Maria Alice

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  11. Oi, Fernanda:
    Como você é sensibilíssima, sentiu essa melancolia de que nem eu mesma tinha me dado conta. Às vezes os textos vão surgindo com cara marota, sorridente, e mudam a trilha sorrateiramente. Senti agora o tom melancólico, mas felizmente foi apenas uma melancolia de quem às vezes se defronta com a folha em branco, branquíssima, e fica ali, tentando seduzir as palavras que não vêm.
    Beijos.

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  12. Maria Alice:
    E você sempre me alegra com seus comentários cheios de carinho.
    Beijos.

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  13. O doce balanço...a mão segura da mãe, sempre presente...foi o que me fez pensar...
    E no momento de um pesadelo, lá está, novamente, este mesma mão a nos embalar.
    Adoro seus textos...
    Beijos doces,
    Obrigada pela sua visita..volte sempre amiga,
    Regina d'Ávila.

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  14. Oi, Regina:
    Adorei saber que o balanço deu margem à reflexão sobre a importância do amor materno.
    Beijos carinhosos.

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  15. Maria Teresa, as palavras são como bola para vc!
    Rola, chuta, quica, apara no peito, faz embaixadinha, cabeceia e Goooooooooool.
    Vc brinca com elas, vira do avesso, como se estivesse num parque de diversões!...rssss
    Adorei!

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  16. Oi, Vera:
    Que delícia de comentário! De fato, as palavras parecem uma bola disputadíssima, que muitas vezes fazem sofrer e noutras fazem morrer de alegria; o problema é a dificuldade de fazer o gol!!
    Beijos.

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