quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Nariz


Dizem que as mãos têm memória, mas os narizes não ficam atrás; principalmente o dela, com aquele formato de fusca, como já ouvira alguém mencionar. Muitos admitem que parece o meu, arrebitado, será? Talvez tenha até uma ou outra curva semelhante, afinal, as curvaturas aproximam-se pelo arqueamento e pelo ziguezague. Particularmente, este aqui está muito mais atrelado a uma postura de audácia comportada, enquanto o outro parece nunca repousar, mesmo nos momentos em que o resto do corpo dorme e sonha; provavelmente seja porque, nesses instantes, ele aspire toda a tristeza para fora dela, deixando-a sempre com aquele jeito atrevido de quem sabe onde põe o nariz.

De fato, com aquelas várias pintinhas na cútis com cheiro de sabonete, está sempre de sobreaviso, solerte, sabido. Participa de todos os assuntos e palpita com dignidade de uma “consciência sem remorsos”, daí já lhe ter valido muito na vida mesmo. Assim, quando às vezes o coração dá uma pirueta e cai de cara no chão, é esse nariz de tez salpicada de inconformismo que toma a dianteira e se veste de audácia e de pose: a dissimulação parece sempre um passo de bailarina que plana leve, afoita, elegante. Então ele ri; ou melhor, mordisca a isca de um riso cheio topete e faz com que a energia rodopie à sua volta, faz com que olhos, boca, queixo e bochechas insinuem-se com personalidade ímpar.

Entretanto, aquele nariz também adora ser cortês às avessas, periodicamente. Contrariado, infla-se de intrigas e assume posição de vanguarda para garantir a defesa de seus pontos de vista, às vezes dissuadidos de razão. E quem o demove de sua empreitada? Cobre-o ligeiro com cascas de expressões nunca vistas, numa superposição de camadas finas e translúcidas, insensatas, mas coerentes. Evoca coisas remotas, e edifica argumentações coesas, numa demonstração efetiva de ousadia.

Certa vez, no entanto, foi contemplado com uma espinha doída, bem naquele evento em que ela faria o discurso importante, representando muita gente, num espaço cheio de exotismo e de glamour. Que decepção! Muita reza, maquiagem, promessa e simpatia, tudo foi feito para distrair o inchaço, mas o nariz, vaidoso, não cedeu e até hoje, muitos anos depois, as fotos, todas elas atestam aquele enfeite especial, num momento em que o nariz deveria ter sido apenas nariz, simplesmente nariz.

11 comentários:

  1. Memória de nariz não falha. Nariz - qualquer nariz - não tem amnésia.
    Muito bom texto.
    Abraço.

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  2. Verdade, Eduardo! Ele vai sempre empinado na frente, vasculhando o que às vezes procuramos esconder a sete chaves... Fiquei feliz com a visita. Abraços.

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  3. Maria Tereza,
    só há um jeito de conseguir acessar teu blog: entrando pelo painel do nosso...
    Tentei pelo comentário e nada.
    Fui através dos seguidores e nada.
    E aí me veio a questão: mas como é mesmo que consegui (poucas vezes, é vero) falar com ela?
    E veio a luz... pelo painel.
    E cá estou, feliz da vida por te achar novamente...
    Nariz, nariz, conte-me teus segredos mais secretos!!!
    Há alguns que, de tão empinados, que chegam na frente do dono ( e de tão grandes tb! rsrs)
    Muito bom teu texto.
    Bjsss

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  4. Oi, Graça: que ternura de visita! Adorei. Agradeço-lhe o empenho e o carinho; volte sempre! Beijos.

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  5. O nariz é um gatilho para o fluxo de consciência. Belo texto, sempre poético. Que bom que gostaste da minha indicação à VejaBlog. Se tu me permitires, posso colocar o link do teu blog nos meus interessantes. Beijos.

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  6. Tânia, obrigada por seu carinho, mais uma vez. Ficarei feliz se você colocar o link do blog nos seus interessantes; certamente de lá virão sempre bons fluidos. Beijos.

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  7. Amiga Teresa,

    Aqui estou!!!
    Já dei uma vista de olhos e fiz-me seguidora.
    De momento não tenho tempo para ler os textos, mas voltarei, prometo.

    Beijoooo

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  8. Seja muito bem-vinda, Fernanda! Sua visita será motivo de alegria para meus botões!! Beijos.

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  9. Olá Teresa,

    Voltei para ler o seu último post...
    Fantástico!!! Leitura muito agradável, fluída, perfeita mesmo.
    Adorei.

    O seu narizinho deve se, pela descrição, bem do género dos que eu gosto, pequenino a arrebitadinho, o meu é mais do tipo também pequenino mas batatinha.

    Sem dúvida alguma que " as mãos têm memória, mas os narizes não ficam atrás".
    Eu guardo memórias, pelos aromas, de pessoas, de comidas,de lugares, de livros, de um sem fim de coisas, tudo graças ao meu narizinho.

    Beijinho,

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  10. Maria Teresa!
    Só hoje consegui tempo para vir "meter meu nariz" no teu blog e veja que grata surpresa encontrar um cheiro tão gostoso de texto bem escrito, como sempre.
    bjos
    Maria Alice

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  11. Fernanda: bons ventos a tragam dessa terra de que gosto tanto!
    Tenho sim um nariz bem arrebitado, e com ele vou xeretando por aí e encontrando gente simpática, que aprecia brincar com as palavras como eu. Como é bom! Beijos.

    Maria Alice: que visita mais carinhosa!! Sua presença é sempre grata e torna esses momentos de "correspondência" muito prazerosos. Beijos.

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