quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Menina


Levantei cedo com cara de pesadelo e fui aos trancos até a torneira da pia. Os pingos que pingavam sem compaixão me tinham dado uma trégua, ufa! Senti que aquilo era um bom presságio e tive coragem de olhar para o espelho e olhei. Olhei e abracei logo minha escova de dentes com a volúpia de um amante e carinhosamente coloquei nela uma fina camada daquela pasta azul com gosto fresco de flúor. Ela era minha aliada e seus movimentos de vaivém contínuos me desobrigavam de olhar para frente; entretanto, minha boca espumava e não me restava outra escapatória: teria que abrir a torneira para um bochecho. Abri, olhando para o pé descalço. Depois, febrilmente fui levantando a cabeça me doendo todo, sentindo alguns pingos de chuva choverem cada vez mais torrencialmente e de novo a vi. A casa estava lá, na beira do córrego, branca, branca, e a chuva ainda não chegara ali. Então a menina apareceu na janela e acenou para mim. Não saí do lugar e ela acenou de novo, com aquele seu sorriso gelado de menta. Foi quando corajosamente decidi e avancei no meio do aguaceiro, satisfeito com minha determinação matutina. No entanto, assim que sentiu os primeiros respingos da chuva, a casinha branca da beira do córrego deu no pé; delirando de paixão, dei outro abraço na minha escova de dentes e olhei de novo, com a perplexidade de minhas retinas encharcadas: minha menina tinha sumido para sempre, deixando atrás de si apenas um perfume de hortelã.

(ilustração: renatoartes.wordpress.com)

2 comentários:

  1. A vida e suas mentas nem sempre felizes... (explicado o sumiço dos 'seguidores'. veja lá no meu último post)... Abraços!

    ResponderExcluir
  2. Obrigada, Nivaldete! Eu também já estava carente dos meus seguidores repentinamente desaparecidos... Abraços!

    ResponderExcluir