sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Hóspede



A ficção pode recriar a realidade ou até espelhá-la. Também pode fugir dela, mas encontra ali seu ponto de partida. Fiquei então intrigada com a comparação que imediatamente se estabeleceu, para mim, quando relacionei este antológico trecho de Iracema, romance de José de Alencar, ao caso Zelaya: - “Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela morrerá; mas o hóspede de Tupã é sagrado; ninguém o ofenderá; Araquém o protege.” A virgem é Iracema, metaforicamente entendida como a natureza brasileira; o hóspede é Martim, guerreiro branco representativo do colonizador português, que se surpreenderá com o exotismo dessa natureza (e de Iracema), nos idos de 1500, e que procurará respeitá-la e reverenciá-la. O escritor cearense teve o cuidado de idealizar o colonizador, já que era época pós-independência e o Brasil pleiteava encontrar um espaço no cenário mundial: teria que começar a andar com as próprias pernas. Pois bem, ocorre, no romance, que a virgem dos lábios de mel (terra virgem) “abandona ao guerreiro branco a flor de seu corpo”, após oferecer a ele o licor da jurema, alucinógeno, que só ela, a sacerdotisa de Tupã, sabia preparar. Por isso ela morre, de acordo com as crenças indígenas; Araquém, seu pai e pajé, já o prenunciara. No entanto, o guerreiro aliado dos índios inimigos dos Tabajaras, a tribo de sua amada, este é protegido, pois é hóspede de Tupã. É a natureza brasileira cheia de encantos desvirginada pelo valente guerreiro, após ser seduzido por ela; é o escritor e político Alencar mostrando ao mundo a chegada do colonizador respeitoso e íntegro, que deflora ingenuamente a cultura brasileira. Ironia de Alencar, de cuja crítica nada escapava? Será? Um século e meio depois, agora na realidade, Manuel Zelaya é hóspede na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa, Honduras, e como tal, merece todas as garantias.


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