quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Empate



Sou um homem humilde, insignificante, quase invisível no grupo de quatro que gasta o tempo jogando dominó. Os outros gostam de piada, de paredões do BBB, de risada com a mão na barriga, de cochichos na frente do freguês.  Mas a gente não vive só. E não basta saber a técnica toda de consertar furo de pneu.

Hoje mesmo apareceu lá na oficina uma grã-fina com um daqueles carrões enormes que não cabia na portinha verde da garagem. Atendi no meio da rua, embaixo do chuvisqueiro danado que começou a cair logo cedo e que não tinha jeito de parar não. A dona nem quis descer do carro com medo daqueles lá; vou dizer a eles para mudarem a mesa de jogo de lugar, ora se vou. 


O asfalto estava uma quentura só, apesar da água toda descendo com raiva e me encharcando enquanto o rádio dentro do carro derramava palavras que eu não entendia. A música era triste, bem triste. A dona chique de colar às vezes olhava para mim, às vezes conferia os três lá dentro que devoravam com seus bigodes encardidos os braços brancos dela cheios de pulseira, muitas pulseiras. Pra disfarçar, a moça falava com alguém pelo celular, acho que era só fingimento pra afugentar aquela agonia de estar ali com o carro meio no chão meio suspenso por causa de uma barbeiragem boba boba, aquilo tinha sido guia, eu nunca me engano não. 


Coloquei o pneu na banheira e não deu outra, tinha que deixar para remendo de várias camadas e ainda mais a máquina de prensar por umas três horas não menos que isso. A dona ficou de um jeito nervosa, que quase vi suas lágrimas descendo pelo rosto maquiado e caindo na enxurrada da sarjeta, mas ela deve ter chorado pra dentro mesmo. Expliquei a impossibilidade de aprontar na hora e ela olhou pra minha careca molhada não só de chuva, mas de raiva dos três que riam e riam sem as educações necessárias; depois olhou pra eles com aqueles olhões assustados me implorando uma solução para sair dali .


Não gritei, isso eu nunca fazia. Em nem um momento da minha vida eu era da maneira como parecia aos outros. As cascas dos pneus consertadas o tempo todo grudavam em mim e me escondiam do mundo, por isso eles se surpreenderam com as palavras minhas vomitadas com calibragem fora de controle. Ouviram de bigodes caídos e foram embora sem nem mesmo levar o dominó. Agora não estou com medo daqueles beberrões, claro que não,  e ainda
vou dizer a eles para mudarem a mesa de jogo de lugar, ora se vou. 

É, hoje acho que deu empate. 
(imagem: http://www.google.com.br)

7 comentários:

  1. Sensacional retrato da irrealidade cotidiana.Gosto muito desse seu viés de olhar o mundo, Maria Teresa. Parabéns, de novo.

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  2. Marcelo:
    Agradeço muito suas costumeiras palavras gentis.
    Grande abraço

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  3. heheheh!!! Já que foi preciso dispensar os amigos mal educados e beberrões, vai ver que a dama promete... bjs

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  4. Doroni:
    E por que não, né?
    Seja muito bem-vinda entre meus botões.
    Bjos

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  5. Bem realista, bem verdadeiro, dia a dia acontecem essas coisas.
    Muito bom texto, como aliás acontece sempre.

    Beijo pra você.

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  6. Dade, obrigada. Feliz feliz com essa dose grande de carinho.
    Bjo

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  7. Não será nossa vida também um dominó, com peças que podem ser dirigidas ao nosso bel prazer? Quando se dá o empate? Bj RU

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