quinta-feira, 28 de julho de 2011

Restos

Completamente sem dignidade, com os pés para cima, estava lá com suas listras azuis e brancas, naquela caçamba da rua. Quer dizer, sem dignidade não, pois mesmo naquele estado e sobre nacos de restos de obra, o sofá ainda mantinha um porte altivo e vigoroso. Equilibrava-se ali meio torto, desbotado pelo sol forte que castigava naquele mês de inverno que mais parecia veranico fora de hora. Reconheci-o de imediato, mas ele não me viu, ainda bem. Passei de carro, fazendo o contorno na esquina e desviando da caçamba cheia de coisas de nada. Serviria para quê? De que lhe adiantou saber todas aquelas histórias, acomodando confortavelmente os pés cansados vindos da rua sob umas pequenas mantas que sempre ficavam por perto, para aconchegar mais e mais? Ela deve tê-lo descartado como fez comigo, ou por minha causa mesmo. Lembro bem o dia quando me sentei nele pela primeira vez ao lado daquele perfume e daquela calça jeans que até hoje me deixam maluco. Laura foi gentil e me fez um suco de acerola bem grosso, geladíssimo, uma delícia. Acho que eu estava meio bobo e deixei cair umas gotas na listra azul mais clarinha, manchando um pouco o braço redondo onde ela gostava de apoiar a cabeça quando via os filmes do Woody Allen, será que aquilo foi um sinal que eu nem percebi? O vermelho escuro não saiu mais, mesmo com o capricho da Dirce, que aparecia uma vez por semana para arrumar os desarranjos de nossas ousadias. Aquele sofá de dois lugares foi o palco de nossas representações, quando vestíamos nossos melhores personagens, os mais autênticos, porque destituídos de máscaras ou de maquiagens ou de subterfúgios. Éramos apenas nós, caprichados, necessários, felizes de estarmos ali entre as listras azuis e brancas da cor de nossos sonhos, um dia manchados de acerola.

(imagem: http://www.google.com.br/imgres)

12 comentários:

  1. Olá Maria Teresa! Conheci o seu espaço... falei com seus botões! Você é uma escritora autêntica! Gostei muito do que li. Voltarei sempre. Abraço da Célia.
    http://celiarangel.blogspot.com

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  2. Célia:
    Seja muito bem-vinda entre meus botões. Sempre.
    Grande abraço

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  3. Restos, do que foi e ainda continua a ser de uma certa maneira, porque continua a burilar no pensamento...mesmo sendo restos e com nódoas...
    Parabéns pela forma tão peculiar que imprime à sua escrita!
    Beijinhos,
    Manú

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  4. Manuela:
    Verdade, viu? Alguns restos vão para o lixo, mas continuam atrapalhando com sua lembrança dolorida.
    Beijos

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  5. Seu texto faz uma interessante observação sobre o descarte de objetos que, hoje em dia, infelizmente, pode se confundir com o descarte de pessoas. E o que vai sobrar disso tudo? Um abraço.

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  6. Halem:
    É tudo tão efêmero, não? Há sobras sempre, mas elas têm um sabor de coisas dormidas e descartáveis, mesmo que ainda mantenham o frescor das essências. Uma pena!
    Abraços

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  7. Entre uma caçamba e um sofá, uma história... E cada vez que um objeto de estimação é abandonado às traças, outras vidas e novos casos são reatados, em uma corrente humana de ilusões, saudades, lembranças... com a nossa marca e, talvez, com o nosso desvario! Muito bom! RUTH

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  8. OLá, Maria Teresa,

    todas as vezes que precisamos descartar algo que foi palco de nossas emoções, nossas melhores vivências, nossas mais íntimas recordações, é como se fosse, junto com o objeto, um pedaço daquilo que fomos um dia...
    Com manchas de acerola, melhor ainda, minha querida!
    Que lindo seu texto! Excelente, como todos com os quais você nos brinda!
    Abraços,
    e obrigada pelo carinho da sua visita. Venha sempre aos meu Botões Madrepérola, é uma alegria e honra recebê-la.
    Graça Lacerda

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  9. Ru:
    Verdade, em tudo ficam nossos estigmas, nossas digitais do de dentro e do de fora. Bem pensado!
    Beijos


    Graça:
    Obrigada pelo carinho sempre tão expressivo com que você me visita. É uma honra!
    Beijos

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  10. O espaço está maravilhoso.
    Passei para agradecer tua visita e deixar meu abraço, Teresa...

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  11. As coisas se vao para abrir espaço para renovação. Grande abraço, Ma.Teresa. Passando para curtir seu espaço...

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  12. Malu:
    Apareça sempre. Você será muito bem-vinda entre meus botões.
    Abraços


    Profex:
    E a renovação torna tudo original, mesmo que haja resquícios do que findou, resíduos incorporados, sedimentados. Você tem razão.
    Obrigada pela visita. Volte sempre.
    Abraços

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