domingo, 17 de julho de 2011

Flip

A Flip, Festa Literária Internacional de Paraty, começou com a doçura serena das lembranças de Antônio Cândido sobre o homenageado da festa, o anarquista literário Oswald de Andrade, que ele conheceu na década de 1940 e com quem conviveu com a harmonia dos que se respeitam e se valorizam. O mestre de todos nós nos abraçou com ternura e, com ele, iniciamos provando os primeiros bocados que as palavras foram amalgamando. Tantos bocados! A cada nova mesa, um sabor diferente, um gosto às vezes exótico, às vezes trivial, quase sempre pertinente. O aprendizado foi indescritível e o paladar das coisas ouvidas nos levou a petiscar, a saborear, a cravar os dentes, a lamber os beiços.
Propuseram que fôssemos antropófagos: - “Tupi or not tupi, that is the question” - entendendo Antropofagia não apenas com sentido de vomitar, mas de assimilar, como ensinou José Miguel Wisnik. Oswald de Andrade deu o tom, mas era impossível deixarmos de ver o criador de Macunaíma nos bastidores. Mário também estava lá, nas entreconversas sobre o processo de escrita, sobre a criação da obra literária: “Entre o leitor e o escritor se constrói uma outra obra que nunca será publicada. O texto literário dá voz ao leitor; quando lê, esse leitor também fala” (Bartolomeu Campos de Queirós).  Respirávamos, entre a serra e o mar, o aroma de temperos vários dos livros que prometíamos conhecer brevemente, descobrindo nossa importância nessa interação que nos deliciava : “Só o leitor completa o processo de escrita; e cada encontro é único” (Ana Maria Machado).
Com um frio cortante que exigia cachecóis em pleno litoral do Rio de Janeiro, caminhávamos apressados pelas ruas de enormes pedras do centro histórico da cidade palco da festa, onde a palavra era o centro das atenções: “Eu aceito ajuda de palavras que sequer existem. Um texto literário tem que ter algo inseguro e incerto” (Peter Esterhazy). Palavra revestida de poesia que nos dava um aperto por dentro, fazendo com que até os mais durões sentissem aquele arrepio próprio das almas sensíveis: “Fui estragado pela poesia, porque a poesia me oferece tudo; o que importa é criar expressões e poesia é território pleno dessa magia” (Valter Hugo Mãe).
Caminhávamos de braços dados com os personagens que chegavam até nós, ora vacilantes e doces, ora rançosos e mal humorados: “Você precisa apaixonar-se pela personagem para conseguir suportar essa entidade” (Michael Sledge). Evitávamos pensar no término desse envolvimento, no retorno a nossas rotinas: “A escrita vem do espanto, da ignorância que quer ser compensada. Eu sou todas as personagens e nenhuma delas e romance é história dos sentimentos e não história dos fatos. Quando o romance acaba, dá uma tremenda solidão... Os personagens saem com os leitores, na companhia deles e eu fico só...” (Andrés Neuman).
Evidente que aspectos sociais e políticos foram debatidos com apetites gulosos ou ácidos: “Cada coisa que fazemos é política e as palavras servem muito para isso. No entanto, para a política, o que importam são as trincheiras de poder, mas a literatura vai além; a imaginação é músculo da empatia” (John Freeman). “Tenho medo do ser humano pilotando seu próprio destino; queria que minhas histórias fossem mais bonitas de contar” (João Ubaldo Ribeiro).
Histórias e mais histórias que nos fizeram olhar para dentro e refletir um pouco mais sobre nossas perspectivas, muito mais do que simplesmente assistir a uma sequência de posicionamentos dos autores que vieram de todos os cantos do mundo para compor conosco uma obra única, oferecida para nossa degustação: “Antropofagia pode vir a ser a imaginação teórica da alteridade; precisamos repolitizar a antropofagia. Se o Manifesto Antropófago dizia que ‘só me interessa o que não é meu; lei do homem, lei do antropófago’,  precisamos acertar nossos ponteiros pelo olhar do que vem de fora – o outro é o outro eu” (João Cezar de Castro Rocha).
 De fato, no final da 9ª edição da Flip, saímos engrandecidos, satisfeitos, apesar de grandes questões ainda pairarem como enormes dúvidas de nossos valores e de nossos entendimentos: “A Ciência vai dar conta do sentido explosivo da fé?” (tema em debate entre Luiz Pondé e Miguel Nicolelis). No entanto, deixamos Paraty, sobretudo, com aquela certeza kafkiana de que valemos a pena quando, diante daquilo que fere e frustra, continuamos com nossa capacidade de amar que ultrapassa todas as barreiras. Antropofagia para todos os gostos.  

(imagem: http://www.google.com.br)

7 comentários:

  1. Depois dessa brilhante análise sobre a FLIP só nos resta parabenizá-la e aguardar as pérolas culturais que virão por ai... Se a Feira foi um sucesso foi porque estudiosos como Você souberam lhe dar o devido valor, aproveitando ao máximo a oportunidade tão privilegiada. Você merecia!

    Bj RUTH

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  2. E pensar que a gente podia ter se encontrado lá em Paraty e curtido juntas aquelas palavras que você, tão sabiamente, citou em seu texto.
    Quem sabe no ano que vem?
    Beijo beijo.

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  3. Deixei um comentário no mural do FB sobre esse post.

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  4. Passei para lhe deixar um beijo de amizade.

    Boa semana.

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  5. Uma reportagem muito bem feita, por ter sido vivida intensamente, com muita emoção! Eu agradeço, pq sou uma interessada pela cultura brasileira!
    Beijos,
    Manuela

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  6. Ru:
    Obrigada, que delícia de carinho por escrito! Como sou privilegiada, né?
    Beijos


    Dade:
    Nossa, como eu teria gostado disso! Ainda bem que tem Flip todo ano!
    E muito obrigada pelo comentário do FB. Valeu!
    Beijos


    Manuel:
    Outro pra você! Apareça sempre.


    Manuela:
    Estive meio ausente e nem tinha visto você nos Casos e Acasos da Vida! Obrigada pela visita sempre tão simpática.
    Beijos

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  7. Amiga Teresa
    ‎"Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós."
    (Antoine de Saint-Exupéry)
    Beijinho com amizade
    Quicas

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