quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Cinza

Foi um tempo de máscaras, de não trazer à tona aquilo que tinha um certo sabor de ranço e que estava escondido, possivelmente até esquecido. Alegria camuflada, pelo menos, pois carnaval não era momento de pensar em outra coisa que não fosse não pensar em nada; era tempo de pôr à prova o condicionamento físico, ainda mais com o calor sem chuva que castigava mais que nunca, fazendo com que a fantasia se fosse desintegrando a cada passo do caminho. Então me lembrei de Drummond, nosso poeta eterno, que cuidadosamente se imaginou na figura patética de um elefante fabricado de madeira e preenchido de algodão, de paina e de doçura e que saiu às ruas à procura de amigos neste mundo enfastiado. Comparei-o às milhares de pessoas que desfilaram garbosamente pelas avenidas e também àquelas que, comodamente assistiam às outras, felizes, imaginando-se também dançar e dançar sob os holofotes. Elas cantavam sem muitas vezes saber o quê, pois o importante mesmo era a máscara da vida, os instantes de ausência do eu sofrido e escondido por baixo das plumas e dos brocados. No final de tudo, porém, todos retornam, a cola se dissolve e, tal qual com o elefante, todo o conteúdo de perdão, de carícia e de algodão “jorra sobre o tapete, / qual mito desmontado”. Mas isso não importa, certamente, porque já é quarta-feira de cinzas e só o que existe como projeto é que “amanhã recomeço”.

10 comentários:

  1. É um privilégio ser o primeiro a comentar um texto de alguém com o sentido do real. Não posso estar mais de acordo com o que lhe dizem os seus botões !!!
    Foi constrangido que assisti, na televisão, ao desfile de meninas a tiritar de frio, porque é moda, nesta quadra, imitar os brasileiros, esquecendo que além de ser um povo com outro espírito, o clima, ali, é propicio a tais indumentárias.
    Mas se retirarmos a faceta da «imitação» completamente desajustada, também não adiantamos nada no que respeita à nossa própria tradição. Nada acrescentamos ao divertimento e á alegria que devem fazer parte de uma vida saudável.
    Se foi constrangido que ontem assisti aos desfiles, foi deprimido que esta manha assisti ao ritual do funeral do carnaval !!!!!
    Aqui lhe deixo o meu aplauso.

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  2. Caro Puga Assis:
    Agradeço muito sua mensagem tão enfática e calorosa. Infelizmente, esses dias de carnaval, por aqui, servem mesmo para varrermos o lixo para baixo do tapete. Muitos aproveitam essa alegria camuflada se comprazem dela, mas como você bem disse, o “funeral” dessa parcela de folclore que, sem pedir licença, gruda como estigma na alma de todos os brasileiros, é indigesto.
    Abraços.

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  3. Um texto excelente, Maria Teresa, de muita sensibilidade e lucidez. Os acontecimentos vão mudando de sentido e de função, à medida que o tempo passa, mas em alguns casos eles permanecem quase iguais. Acredito que essa seja a verdade que mora no fundo do carnaval.
    Beijo pra você.

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  4. Dade:
    É mesmo um processo crônico: a verdade, que com grande esforço vai chegando à tona, é bem pisoteada e retorna ao ponto de origem. E Momo se perpetua!
    Beijo carinhoso.

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  5. Maria Teresa
    Estou completamente de acordo consigo em relação ao carnaval, mas em Portugal tudo se torna mais estranho. As pessoas mascaram-se de tudo e até tentam mascarar o clima,desfilando semi-nuas como se estivessem no Brasil, numa triste máscara de calor que não existe.
    Beijinho
    Lourdes

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  6. Maitê,

    que belas reflexões , amiga!

    ..."os instantes de ausência do eu sofrido e escondido por baixo das plumas e dos brocados"...

    nada mais verdadeiro!!!

    Amanhã será quinta-feira pós-cinzas...
    E aí, minha querida, tudo se esvai mesmo...a cola se dissolvendo...

    Um megabeijo, escritora linda!

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  7. Deixe que pulem os foliões e que infestem-se os salões; deixe na rua os turbilhões, deixe que estourem-se os rojões! Pois se Brasil é carnaval e navegar é Portugal; e se dezembro é divinal devido a compras de natal; deixe que cantem, dancem, chistem, pois dentre tudo há pior mal!

    Um abraço!

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  8. Lourdes:
    As pessoas até se deixam mascarar, mas a Natureza continua seguindo seu curso; ela realmente deveria servir de modelo, não é?
    Bjos


    Graça:
    Que linda mensagem! Você sempre inundada de ternura, que bom!
    Beijos


    Léo:
    Seja sempre bem-vindo aqui entre meus botões!
    Grande abraço!

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  9. É curioso perceber a necessidade que as pessoas apresentam de afastar da realidade. Já brinquei carnaval, até saí em o bloco mas a coisa foi perdendo, lentamente ! , o sentido..porque no lugar de vida eu encontrava no final do caminho(dispersão do bloco) só angústia e muitas pessoas que não tinham nem pra quem voltar.
    Aqui perto de casa temos a mostra do verdadeiro espírito do carnaval; ruas desertas um silêncio quase fúnebre...e um quê de tristeza no ar...suas palavras refletem bem este estado!
    abraços.

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  10. Celso:
    Concordo com você. Também eu já gostei de carnaval, mas sinto que a poesia da brincadeira, do mistério escondido sob a máscara, está cada vez mais minguada, sem graça, muito prosaica...
    Abraços

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