sábado, 27 de fevereiro de 2010

Avesso



Telas imensas projetavam-se no espaço oco das salas. Inscrições sem nexo, cores vibrantes sobrepostas, figuras agressivamente constrangedoras. O desafio para os que admiravam as pinturas era enorme; as respostas estavam todas ali, mas deveriam ser conquistadas.

Para eles, no entanto, a tarefa árdua ficava em segundo plano. O convite à decifração dos enigmas era vão, pois, no meio de todos, estavam a sós. O mundo dos painéis os rodeava, mas eles viviam num espaço próprio, íntimo, sedutor. Estar ali lado a lado fingindo compreender o significado da arte que todos apreciavam era apenas um pretexto; estavam unidos pelo calor da sala fria e vibravam de amor. Aparentemente, mais dois espectadores concentrados, intelectualizados; no íntimo, duas almas que comungavam ao som da melodia de seus próprios corações. Sentiam os acordes à medida que caminhavam, à medida que se deslocavam para observar novos quadros; porém, a única realidade surreal daquela mostra não era a registrada em nenhuma tela, mas a emoldurada por eles que pouco se olhavam, mas se consumiam só por estarem lado a lado.

Se não saíssem do ambiente fechado, sufocariam, apesar da transparente serenidade de seus semblantes. Mas por perto estava a natureza. E o lago. Havia cisnes brancos e negros, altivos, perspicazes. Contudo, nem as aves sobranceiras foram capazes de enxergar a plenitude da magia que os contagiava. Estavam ali olhando a água plácida, a mansidão das asas que vez ou outra se movimentavam, comentando algum detalhe do desenho que chamou atenção, mas só para deixar a realidade, distraída deles, percorrer seu caminho. Os dois continuavam dentro daquela moldura hermética e só eles tinham o poder de interpretar o quadro oco-mágico. Para sempre, ele e ela.

(do livro Encontros e Des-Encontros)

2 comentários:

  1. Oi Maria, essas pinturas são de quem?
    E esses dois últimos posts são de um dos seus livros, né? Dá Ateliê Editorial. Sei que na Edusp, além dos próprios livros da Edusp, o que mais tem são livros da Ateliê. Vou procurá-lo.
    A outra editora eu não conheço, ou deve ser parte de alguma outra maior ou não deve ter mito apoio no mercado editorial.
    Vc poderia me recomendar uma livraria em que tenha um exemplar? lembrando que não costumo comprar pela internet.
    Beijão Querida, obrigada por mais um botão.

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  2. Amanda:
    Os quadros são de Marc Chagall, um pintor de que gosto muito, devido à importância que ele dá ao onirismo. Quanto à livraria, normalmente há alguns exemplares nas de grande porte, como Saraiva e Fnac, por exemplo; caso não haja, eles encomendam. Muito obrigada pelo interesse.
    Beijo carinhoso.

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