quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Êxtase

Foi tudo tão rápido, como um gesto desses banais e fortuitos, de que já não se lembra mais antes mesmo de terminar. O caso é que ele nunca deixara de notar aquela perna balançando, cruzada por cima da outra bem estática, tensa. Não olhava propriamente a perna, mas o joelho arredondado que parecia encará-lo marotamente, como se espelhasse bem no meio o constrangimento dele de fingir não ver, vendo. Havia outras pernas e outros joelhos, mas o que despencou no chão quando a cadeira ruiu foi aquele que aos poucos foi sangrando e tornando-se invisível pelas lágrimas que instantaneamente brotavam ali mesmo, do centro da própria imagem dele agora fragmentada pelo chão. Ofereceu-lhe um band-aid e ela nem agradeceu nem sorriu; com displicência, colocou-o sobre a rótula ferida. Enquanto ele recobrava sua própria respiração, que abraçava aquele perfume morno e vermelho, ela sentou-se noutra cadeira, balançando a perna, cruzada por cima da outra, extática.

(foto: bp1.blogger.com/.../mulher+de+perna+cruzada.jpg)

4 comentários:

  1. Oi Maria! Sempre leio seus textos. Gosto bastante. Uns um tanto quanto difíceis de entender com apenas algumas leituras. Mas como a linguagem usada me encanta, é um prazer andar com eles na cabeça pra lá pra cá até que eles se decidam pelo melhor alojamento. :)
    Resolvi comentar esse texto em particular, porque me intrigou muito a atitude apática dessa moça diante de sua rótula exposta, invadida e ferida desse jeito. Que será que houve?!
    Será que doeu tanto para ela que foi melhor fingir que nada houve ou será que os sentidos do protagonista estavam perturbados demais ou em suspensão para perceber o que sentia quem estava tão perto?
    Ou ainda, será que a posição da moça era tão desconfortável que deu graças a Deus de ter caído, para ter a desculpa de se sentar em lugar mais adequado, que pouco se importou com o sangramento e a fissura.
    Ou melhor, quem sabe não esperasse por eles?
    De uma coisa eu tenho certeza, cruzar as pernas depois de uma aventura dessas, no mínimo, não é nada fácil.
    Um beijo,
    Amanda.

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  2. Oi, Amanda:
    Fico lisongeada ao saber que você anda com os textos destes botões pra lá e pra cá.
    Quanto às possíveis interpretações em relação ao que aconteceu de forma tão inesperada, isso é mesmo um mistério; no entanto, em momentos de êxtase, não existem mesmo argumentos racionais capazes de explicar tudo tim tim por tim tim, não é?
    Abraços e obrigada pela visita.

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  3. Maria,
    seus textos são encatadores! Gosto da maneira como vc articula as figuras de linguagem. Eu que sou professora de Língua Portuguesa (gramática e redação) e não consigo deixar de perceber certos detalhes estilísticos que dão a eles um toque especial.
    Gostaria de ter sua permissão para usar o seu texto em uma de minhas aulas e levar os alunos a observarem também esses detalhes da sua prosa poética.
    Um abração!
    Regina (www.tecendootexto.blogspot.com)

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  4. Regina:
    Muito obrigada pela visita e por suas palavras carinhosas. Fique à vontade para utilizar estes textos em suas aulas; para mim, será muito gratificante.
    Um grande abraço,
    MTeresa

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