domingo, 4 de outubro de 2009

Anestesia


Acontecia ultimamente às quartas-feiras, logo no primeiro horário. Ela chegava um pouco antes, para já se ir acostumando com o ambiente. Lia a primeira folha do Estadão, tentando concentrar-se e esquecer o que para ela estava sendo preparado no andar de cima. Então a chamavam e ela subia aquela escada de degraus tão bem encerados, que cada um deles refletia um pouco de sua ansiedade e de sua expectativa; instalavam-na na cadeira de conforto reclinável e preparavam-na com aqueles trajes brancos cuidadosamente esterilizados. Uma luz também branca e fria iluminava a sala de 21 graus rotineiros, onde um monitor de TV transmitia o Jornal das 8. Não queria nem ouvir falar em tratamento sem o Prilonest; com afinco, procurara saber tudo sobre aquela anestesia e já se tornara experiente para reconhecer seu odor característico.

O médico sempre chegava sorridente, explicando os efeitos da prilocaína e da felipressina: “enquanto a primeira adormece o local, a outra ajuda a manter a dormência”, repetia com aquele jeito simpático e com uma fileira de dentes brancos como pérolas por trás da máscara alvíssima. Não via a hora de receber aquela agulhada fininha para ter a sensação de que nem sua gengiva ficaria sensível àquela raspagem assustadora. Com extrema delicadeza, ele ia injetando aquele líquido e tudo ia ficando entorpecido: língua, lábio, bochecha. Nunca contara a ninguém sobre o que ocorria então. Como seus batimentos cardíacos normalmente aceleravam - e isso era já previsto na bula do medicamento - a luz de néon do teto recebia cada vez mais calor e piscava freneticamente, até finalmente explodir, exatamente como acontecia com seu coração; parecia-lhe que havia ali perfeita sintonia, que apenas ela reparava. Nunca mencionara o fato ao dentista, pois ele necessariamente o associaria às ilusões decorrentes de seus experimentos ficcionais; no entanto, como lhe aprazia conferir a desintegração das partículas daquele gás invisível, provocada por sua intensa taquicardia! É absolutamente comprovado que o néon faz parte do material que se condensou para dar origem à Terra, mas também é necessário seu retorno à atmosfera para formar as nebulosas. Aproveitava então o melhor momento: carregada pelas nuvens, comprazia-se por mais uma vez poder flutuar e tocar o cheiro que as estrelas exalavam, pisar na água da Lua recentemente descoberta e bisbilhotar os mistérios siderais. Ali encontrava os personagens de seus romances e conversava com eles, para ter a verdadeira dimensão de suas necessidades e de seus sonhos. Voltava confiante seguindo seu olfato apuradíssimo e ainda ouvia o som do terrível do motorzinho com aquele piiiiiiii ensurdecedor.

Entretanto, tal como acontecera com o celular, que agora era recarregado corriqueiramente com o calor do corpo, o trânsito para o espaço logo logo estaria caótico, quando se descobrisse que o coração batendo forte associado àquele gás nobre e incolor é ticket free para viagens inesquecíveis. O melhor mesmo era manter aquilo tudo em segredo, afinal, congestionamentos, já bastavam os das ruas da cidade, enfartadas de tubos de anúncios luminosos preenchidos de néon.

(foto: http://soucontinenteperfeito.blogspot.com/2009/02/o-vento-e-seu-mensageiro.html)

5 comentários:

  1. Quase tive inveja dessa personagem... esse descolar-se, deslocar-se... parece tão bom... e sentir o cheiro das estrelas... Demais! Um abraço.

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  2. ((uma sugestão: aumente a letrinha! rsss))

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  3. Oi, Nivaldete: Delícia mesmo, né! Deveríamos ter esse espírito macunaímico de tornar a vida mais leve, até mesmo numa segunda-feira! Beijo!
    ps: sua sugestão foi prontamente colocada em prática. Obrigada.

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  4. Maria Teresa, viajei na anestesia com a luz neon....rs
    Nunca tive "baratos" na cadeira do dentista, que inveja!

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  5. Você não imagina como tenho tentado observar os luminosos de neon em vários outros momentos "dolorosos", Vera. E olhe que eles estão em toda parte...

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