quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Chuteiras

A alegria dos outros lhe pesava. Tinha olhos moles, que jamais ousaram dizer frases; talvez por isso seu rosto parecesse sempre assustado. Mas era apenas um menino de oito anos que não conseguia pensar, a não ser com os pés. Atrapalhava-se com números e assombrava-se com palavras que deveriam significar muito, mas que, para ele, não valiam um único chute de pé descalço.

Fora escolhido para participar daquele projeto educacional implantado pelo prefeito de sua minúscula cidade do interior. Ganhara todo material que lhe seria necessário para tornar-se um cidadão respeitável. Ganhara também o uniforme azul de faixa vermelha, mas, diferente dos demais, a força iluminadora da razão servia-lhe muito pouco e seus resultados eram quase sempre insatisfatórios.


Não tinha mãe e os seis irmãos já eram todos mais velhos; trabalhavam com o pai na pequena borracharia. Assim, quando surgiu a vaga e sabe-se lá como o menino frágil conseguiu passar no teste da prefeitura, seu pai encheu-se de alegria, pois não tinha tempo de cuidar daquele filho derradeiro. Frustrado com seu desestímulo, proibia-lhe o joguinho no terreno baldio, apesar das súplicas de seu olhar medroso. A vida sempre pareceu incomodá-lo, a não ser que tivesse uma bola nos pés. Nesses momentos, à semelhança de um malabarista, ganhava forças; como um gladiador, transformava o campo de pouca grama medíocre numa arena de sonhos coloridos.

Certa vez, enquanto jogava descalço, como sempre, driblando não só a atenção do pai mas também os quinze meninos maiores do time adversário, foi notado por alguém que por ali passava. Momento de contemplação muda. As sobrancelhas do homem de terno e de gel no cabelo emocionaram-se e, no mês seguinte, o menino mirrado conhecia de perto um campo bem gramado, onde ele jogava de chuteiras.

Durante os próximos dez anos, seus irmãos frequentemente assistiram aos jogos na capital onde ele se encontrava e engrossaram o coro dos torcedores que deliravam a cada falta que ele batia. Agora já não acordava mais com cara de pesadelo, mas sentia falta do pai. Eram como dois estranhos que se conheciam bem e que se amavam à distância.

Viver deve ser mesmo um descuido prosseguido e, no congestionamento das aspirações humanas, outro sujeito de gravata, mas sem gel no cabelo, espantou-se com aquele acrobata dos gramados e, ironicamente, fê-lo vestir um uniforme vermelho e azul. Levou-o para longe.

Quando um dia retornou e trocou sua antiga camisa pela verde e amarela para jogar ao lado dos grandes, o menino miúdo que crescera não se abateu; aprendera que a felicidade tem o poder mágico de transformar as pessoas. Naquele primeiro jogo, que finalmente o consagraria com as cores de seu coração, mostrou sua arte ao universo, minimizando mágoas e violências. Lutam melhor os que têm sonhos belos e isso bem sabia aquele grande empresário de pneus, um dos torcedores que o aplaudia com olhos em cachoeiras.

3 comentários:

  1. Olá, Maria Teresa!

    Saiba que eu recebi seu convite por e-mail... Desde então, estou acompanhando seus textos.

    Seja bem vinda aos meus blogs: Alinhavos de Moda, V Vitrine e V Vitrine Literária.

    Também, muito obrigada por fazer parte da comunidade criativa do Alinhavos de Moda!

    Adorei sua presença e seus textos, viu?!


    Grande abraço!

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  2. Esta é a minha primeira visita ao seu Blog. Muito interesante a sua forma de transmitir ideias e sentimentos.
    Vou "acompanhá-la".
    Um abraço
    Vanda

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  3. "Viver deve ser mesmo um descuido prosseguido"... Antológico! Abração!

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